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Crítica | Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out

Entre a investigação e o sermão.

por Kevin Rick
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Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out marca um ponto curioso e um tanto contraditório na trajetória recente de Rian Johnson dentro do gênero do whodunit. Se Entre Facas e Segredos funcionava como uma atualização elegante e espirituosa de Agatha Christie, e Glass Onion radicalizava essa proposta até o excesso performático, este novo filme parece buscar um caminho de retorno: mais contido, mais teatral, mais interessado em ideias do que em pirotecnia narrativa num mistério de “porta fechada”. O resultado, porém, é um longa que oscila entre uma ambição temática admirável e uma execução irregular, por vezes até frustrante.

A primeira grande diferença está no espaço. Ao abandonar ilhas paradisíacas e mansões futuristas para ambientar a trama em uma igreja rural decadente, Johnson muda completamente a temperatura do jogo. O cenário não é apenas um local de confinamento físico, mas um campo simbólico carregado de culpa, fé, hipocrisia e herança moral. A igreja de Vivo ou Morto é um organismo apodrecido por dentro, sustentado mais por ressentimentos e narrativas de poder do que por qualquer espiritualidade genuína. É uma escolha forte e, conceitualmente, muito mais interessante do que os cenários-cartão-postal do filme anterior.

Essa mudança de ambiente dialoga diretamente com o tom. Aqui, Johnson parece menos interessado em satirizar bilionários e influencers e mais disposto a lidar com temas como fé performática, violência moral, herança simbólica e o uso instrumental da religião como poder político. Há uma tentativa clara de tratar o mistério como algo existencial, e não apenas como um quebra-cabeça engenhoso, saindo mais do “quem matou?” para o “por que matou?”. O problema é que essa ambição nem sempre se traduz em drama orgânico.

O personagem de Jud Duplenticy (Josh O’Connor), um padre ex-boxeador interpretado com intensidade contida, é o coração moral do filme. Ele funciona como um contraponto direto a Benoit Blanc: enquanto o detetive enxerga o mundo como um sistema lógico a ser desmontado, Jud lida com contradições humanas que não se resolvem por dedução. A tensão amistosa entre os dois é, sem dúvida, um dos elementos mais interessantes do longa. Blanc, aqui, é deliberadamente deslocado, quase inadequado e até meio apagado, em um universo onde nem tudo pode ou deve ser explicado. Daniel Craig parece consciente disso e ajusta sua performance: menos caricata do que em Glass Onion, mais cansada, quase melancólica.

No entanto, é justamente nessa fricção entre razão e fé que o filme começa a se perder. O roteiro constrói uma sucessão de revelações, mortes e reviravoltas que, embora engenhosas no papel, soam excessivamente verbais e explicativas. Johnson continua preso ao vício que já prejudicava Glass Onion: personagens falando demais sobre o que está acontecendo, explicando símbolos, intenções e truques, quando o próprio cenário e as ações poderiam carregar esse peso sozinhos. O mistério deixa de ser vivido e passa a ser constantemente narrado, algo que vem desde o início quase de entrevistas da narrativa para apresentar os suspeitos.

Outro problema recorrente é a fragmentação estrutural. A trama introduz muitos personagens com potenciais dramáticos ricos — o político fracassado, o médico fanático, o zelador silencioso, a assistente culpada — mas poucos são realmente desenvolvidos para além de suas funções no quebra-cabeça. Eles entram e saem da narrativa como peças funcionais, não como pessoas. Isso enfraquece o impacto emocional das mortes e, principalmente, da resolução final, que aposta em um gesto moral elevado, mas carece de lastro afetivo suficiente para ser devastador.

Tecnicamente, o filme é sólido, ainda que pouco inspirado. A direção de Johnson é precisa, mas contida; a fotografia aposta em tons frios e sombrios que reforçam a sensação de decomposição institucional; e o design de produção faz um ótimo trabalho ao transformar a igreja em um espaço opressivo, quase claustrofóbico, mesmo quando fisicamente amplo. Falta, porém, aquele brilho visual ou rítmico que tornava Entre Facas e Segredos tão prazeroso de assistir. Aqui, tudo parece deliberadamente menos “divertido”.

No fim das contas, Vivo ou Morto é um filme que pensa mais do que encanta. Há ideias fortes, temas relevantes e uma tentativa honesta de maturação da franquia, mas também há uma sensação constante de que Johnson não confia plenamente no silêncio, no subtexto ou na imagem. O longa quer ser mais sério, mais reflexivo, mais espiritual, e isso é louvável, mas continua prisioneiro de uma estrutura que exige explicação, esperteza e fechamento lógico a qualquer custo.

Se Glass Onion era o excesso autoconsciente do espetáculo, Vivo ou Morto é o recuo contemplativo que ainda não encontrou sua forma definitiva. Não é um fracasso, tampouco um retorno à excelência do primeiro filme. É uma obra irregular, ambiciosa e interessante, que sugere caminhos novos para Benoit Blanc, mas ainda tropeça na própria necessidade de provar o quanto é inteligente. Ainda é um bom filme porque o diretor/roteirista segue afiado em determinados momentos, sabe como construir puzzles que chamam a atenção e tem um uso esperto, ainda que já meio cansado, dos clichês desse tipo de trama. Talvez o verdadeiro mistério da franquia Knives Out, neste ponto, seja descobrir quando Rian Johnson permitirá que suas histórias respirem sem precisar se explicar tanto.

Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out (Wake Up Dead Man: A Knives Out Mystery) – EUA, 12 de dezembro de 2025
Direção: Rian Johnson
Roteiro: Rian Johnson
Elenco: Daniel Craig, Josh O’Connor, Glenn Close, Josh Brolin, Mila Kunis, Jeremy Renner, Kerry Washington, Andrew Scott, Cailee Spaeny, Daryl McCormack, Thomas Haden Church, Jeffrey Wright
Duração: 144 min.

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