Avaliação da temporada
(não é uma média)
- Há spoilers.
Chega a ser trágico que, depois de três temporadas magníficas produzidas durante a parceria Marvel-Netflix, resultando em uma das melhores séries baseadas em quadrinhos até hoje, o Demolidor retorne às telinhas com uma primeira temporada de um soft reboot que passou por tantos problemas na fase de produção a ponto de o showrunner ter sido trocado e extensas refilmagens terem sido feitas para mudar o rumo da versão originalmente concebida. E esse fato nem é o maior problema, verdade seja dita, pois o cerne da questão é que houve uma clara (e financeiramente compreensível) tentativa de reaproveitar o material anterior, que passou a ser uma linha narrativa menor dentro de outra maior criada para a segunda versão, por assim dizer, que, infelizmente, não resultou em algo coeso ou fluido, mas sim em uma verdadeira temporada Frankenstein.
No entanto, não considero o primeiro ano de Demolidor: Renascido essa tragédia toda que alguns dizem ser, mas também não consigo achá-la, no agregado, mais do que mediana, com problemas sérios não só da natureza ampla que citei acima, mas, também, da seara da construção minimamente decente de novos personagens coadjuvantes e vilões – especialmente do grupo que gravita ao redor de Matt Murdock -, que pareçam mais do que eles são, ou seja, extras com diálogos cujos destinos ou ações ninguém liga. Além disso, Dario Scardapane, provavelmente sem saída pelas pressões em cima dele, teve que recorrer a diálogos expositivos e à elipses para fazer com que a história de Wilson Fisk como prefeito de Nova York tivesse algum semblante de sentido, o que levou à correrias, à linhas narrativas interrompidas bruscamente e assim por diante.
Se pararmos para pensar, a temporada só faz sentido de verdade se aceitarmos tudo o que nos é jogado no colo de maneira inclemente, algo que fica muito claro com a Força Tarefa Anti-Vigilantes de Fisk ganhando status de algo já amplamente estabelecido e aceito na cidade em um literal estalar de dedos, mas também passando por personagens que se radicalizam do nada, como é o caso da única terapeuta da cidade que, coincidência das coincidências, passa a namorar Matt Murdock e outros que aparecem barbados para fazer terapia em Matt e, depois, imberbes para lutar ao lado de Matt. E isso sem nem mencionar o desperdício que é matar Foggy Nelson e mandar Karen Page embora sem a menor cerimônia e trazê-la de volta no final com a mesma falta de cerimônia, ainda que com um pouco mais de lógica (a de ajudar um amigo em apuros).
Demolidor: Renascido, foi como ver duas realidades paralelas se chocando, mas nunca se fundindo, uma verdadeira materialização audiovisual do transtorno dissociativo de identidade, ora uma coisa, ora outra, sem nunca se decidir o que quer ser e, no processo, dando rasteiras até menos na qualidade dramática dos atores centrais que ficam perdidos nessa indecisão toda. A esperança é que a segunda temporada não herde esses problemas e que Scardapane realmente consiga fazer o Demolidor renascer e novamente ocupar seu lugar no panteão de super-heróis do Universo Cinematográfico Marvel.
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Como fazemos em toda série ou minissérie que analisamos semanalmente, preparamos nosso tradicional ranking dos episódios para podermos debater com vocês. Qual foi seu preferido? E o que menos gostou? Mandem suas listas e comentários!
9º Lugar:
Arte pela Arte
1X07
Juro que fiz toda força do mundo para aceitar o que vi em Arte pela Arte, mas não deu. Se a dobradinha de episódios que foi ao ar na semana passada, longe de ser excelente, pelo menos conseguiu reacender minha esperança de que a temporada finalmente deslancharia, o que assisti foi um banho de água fria, a exata materialização do que é um roteiro preguiçoso, mal ajambrado, que, chamando o espectador de burro, recorre ao didatismo extremo e à sequências sem peso dramático e, muito honestamente, sem sentido, que acabam transformando o episódio em uma brincadeira de criança que finge ser violento e pesado, mas que, na verdade, é uma bobagem conveniente, cansada e repetitiva que desperdiça linhas narrativas e, mais ainda, um personagem que poderia ser ainda muito bem aproveitado.
8º Lugar:
Ilha da Alegria
1X08
Depois do pavoroso episódio anterior, Demolidor: Renascido tenta se recuperar com um episódio que, como um passe de mágica, transforma desenvolvimento em elipse, continuando a tendência de desperdiçar linhas narrativas e personagens que simplesmente precisavam ganhar o devido desenvolvimento. O Tigre Branco veio e foi embora muito rapidamente, assim como Muse, que ganhou aquele diálogo expositivo de Jardim de Infância. Sobrou a Força Tarefa Anti-Vigilantismo, uma das plataformas eleitorais de Wilson Fisk que surge, aqui, como um caso de sucesso devidamente consumado, dando a entender que muito tempo se passou desde a tentativa de assassinato à Heather Gleen, mais conhecida como a única terapeuta da cidade, mas ao mesmo tempo lidando com o relacionamento dela com Matt Murdock como se tudo acontecesse basicamente no dia seguinte ao atentado.
7º Lugar:
Meia Hora do Céu
1X01
O que temos neste primeiro episódio é a boa e velha apresentação de um novos status quo, algo que é feito de maneira explosiva pelo atentado mortal de Benjamin “Dex” Poindexter, mais conhecido para os leitores de quadrinhos como o sádico supervilão Mercenário (Wilson Bethel), a Franklin “Foggy” Nelson (Elden Henson) diante de uma atônita Karen Page (Deborah Ann Woll) que leva a uma sequência de pancadaria entre o assassino e o Demolidor (Charlie Cox). É um começo esperto que traz de volta tanto Henson quanto Woll, somente para tirá-los da estrutura da série, com Foggy morto e Karen, traumatizada, mudando-se para São Francisco, o que abre espaço para um recomeço que não esquece o que veio antes, mas que educadamente diz que o que veio antes é passado e não importa mais tanto. Em outras palavras, é um meio-termo, uma espécie de “acordo” não negociado entre produção e espectadores, cada parte cedendo um pouco para que o Demolidor possa voltar substancial, mas não completamente da maneira que lembrávamos dele.
6º Lugar:
A Palma da Sua Mão
1X03
O ator porto-riquenho Kamar de los Reyes faleceu em Los Angeles, em 24 de dezembro de 2023, aos 56 anos, depois de lutar contra o câncer e sua despedida do audiovisual, que acontece no terceiro episódio de Demolidor: Renascido, não poderia ter sido melhor. Vivendo Hector Ayala, secretamente o super-herói urbano Tigre Branco, acusado de assassinar um policial no metrô de Nova York, Reyes entrega uma atuação potente, capaz de convencer o espectador de imediato sobre os valores de seu personagem que ele constrói com uma relativamente acanhada aparição na telinha e que, confesso, me deixou na dúvida se a ideia original para a série, que seria mais um drama de tribunal do que uma série típica de super-herói, não teria sido melhor afinal de contas.
5º Lugar:
Sic Semper Sistema
1X04
Demolidor: Renascido continua com os problemas resultantes de ser uma série produzida inicialmente de uma maneira e, depois, alterada completamente, mas sem que o material originalmente filmado tenha sido completamente descartado. É, para todos os efeitos, uma temporada Frankenstein que provavelmente carregará essa “qualidade” consigo até seu final. Não é que o resultado seja imprestável, vejam bem, pois ele está muito longe disso, mas sim que, por mais que Dario Scardapane tenha tentado, ele não vem conseguindo criar total unicidade narrativa e, com isso, os episódios vêm cambaleando entre o que era para ter sido e o que acabou sendo. Se tem um aspecto que, porém, fica cada vez mais claro para mim é que uma série do Demolidor em que Matt Murdock permanece como advogado na maior parte do tempo, usando seus poderes e habilidades com muita parcimônia, é perfeitamente factível e, no frigir dos ovos, é o que mais tenho apreciado aqui, mesmo compreendendo a vontade de muitos de vê-lo uniformizado distribuindo pancadas a torto e a direito.
4º Lugar:
Ótica
1X02
Ótica parece um episódio de outra série que tem coincidentemente os mesmos personagens e funciona de maneira muito mais fluida e unitária que o primeiro que, eu sei, tem o ônus de sacudir o status quo e funcionar como um recomeço, ônus esse que ele não conseguiu carregar com desenvoltura. O segundo episódio, para todos os efeitos, é real começo dessa nova fase do Demolidor, por assim dizer, já que o passado fica no passado quase que completamente, com o único elemento que permanece sendo as inevitavelmente crescentes dúvidas de Matt Murdock sobre voltar ou não a ser o Demolidor em uma Nova York controlada – agora legalmente – pelo ex-Rei do Crime que tem como uma de suas plataformas a supressão dos vigilantes mascarados.
3º Lugar:
Com Juros
1X05
Episódios soltos e autocontidos de séries, especialmente aqueles chamados “de garrafa”, ou seja, que são imaginados para contarem com o mínimo de elenco e/ou cenários, costumam ser muito criativos e por diversas vezes chamar até mais atenção do que os que os antecedem e sucedem. Existem diversos exemplos clássicos, dentre eles Fly (Breaking Bad), The Parking Garage (Seinfeld), Lower Decks (Star Trek: A Nova Geração), Cooperative Calligraphy (Community) e tantos e tantos outros e essa escolha estilística e narrativa é feita por Dario Scardapane em Com Juros, episódio que coloca Matt Murdock tendo que lidar com um assalto ao banco em que vai pedir um empréstimo em pleno St. Patrick’s Day, mais conhecido como o dia em que todos dos EUA se tornam irlandeses para encher a cara de cerveja.
2º Lugar:
Força Excessiva
1X06
Se alguém me perguntar se eu acho que o Demolidor trajado como tal deveria voltar nesse episódio, minha resposta seria negativa e ela continua sendo negativa mesmo depois de assistir Força Excessiva. Mas não se enganem, já que minha avaliação não me deixa mentir: eu gostei muito do episódio, mas tenho para mim que a solenidade do retorno de Murdock à sua carreira de vigilante deveria ser maior, mais explosiva, ainda mais inevitável. E não é que salvar uma adolescente das garras de um grafiteiro serial killer que faz sua arte com sangue das vítimas não é razão suficiente para o super-herói voltar com seus chifres e bastão, pois obviamente é. Meu ponto é que esse momento deveria ter sido empurrado para a frente.
1º Lugar:
Diretor para o Inferno
1X09
Assim como Ilha da Alegria, Direto para o Inferno é um episódio de correção de rumo, que tenta emprestar sentido lógico a tudo o que veio antes, recorrendo, para isso, a explicações marretadas na narrativa no último minuto que são detalhadas para o espectador que é novamente tratado como uma criança de cinco anos que sofre de algum tipo de déficit de atenção. Sim, o resultado é superior a quase tudo o que veio antes, o que já não é um sarrafo muito elevado, mas muito menos pela eficiência dos roteiristas em efetivamente criarem convergência e muito mais pelo retorno de Karen Page que funciona como o instrumento que pareia Frank Castle a um combalido Demolidor que, temos que aceitar (mas só porque é uma série de super-heróis), é capaz de derrotar um exército de policiais corruptos com a ajuda de seu amigo caveiroso poucas horas depois de levar um tiro no ombro.