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Crítica | Depois do Incal: O Novo Sonho

por Luiz Santiago
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Depois do Incal: O Novo Sonho (2001) é um volume-continuação da saga de John Difool, logo após os eventos de A Quintessência – Planeta Difool (1988). Desde que terminara a epopeia principal, ao lado de Moebius, o cineasta e escritor Alejandro Jodorowsky procurou manter vivo o Universo do Incal, fechando algumas janelas, dando algumas boas explicações para os mistérios da vida, para as muitas realidades e níveis de percepção do homem para o seu próprio ser, para a vida, para a morte e para Deus… Ou melhor, para a representação luminosa-e-escura que pode ser Deus. Ao lado do artista sérvio Zoran Janjetov, Jodorowsky olhou para o passado e nos mostrou uma outra parte do tríptico desta teia de dimensões da vida, o Antes do Incal (1988 – 1995). Mas seu sonho de mostrar o futuro ainda permanecia.

Até que convencesse Moebius a se juntar a ele para um outro projeto-Incal, Jodorowsky mergulhou em mares paralelos, porém, ligados à saga, como os primeiros volumes da série A Casta do Metabarões (iniciada em 1992), os primeiros volumes da série Os Técno-padres (iniciada em 1998) e o tomo inicial de Megalex (1999). Então veio Depois do Incal, que inicialmente seria uma nova saga de Difool, em uma outra realidade, após ele acordar do “sonho” que vivera desde O Incal Negro.

Interpretar o que acontece aqui não é exatamente uma coisa fácil, mas é bom destacar que esta não é o tipo de saga que traz o mistério pelo mistério, o símbolo pelo símbolo. Por mais mística e cheia de elementos culturais seculares, filosofia e xamanismo que tenha, a história é bastante pé no chão, fornecendo ao leitor uma boa justificativa para as mudanças de Era Vital e até uma boa dose de explicação do por quê essas coisas precisam acontecer. Claro que não existe didatismo de nenhum espécie, mas por se tratar de uma saga amarrada a outras duas vertentes (O Incal e Antes do Incal) este Depois do Incal tem uma notável sequência de lembranças e retomadas orgânicas de personagens e situações anteriores, o que não deixa o público perdido, servindo, de alguma forma, até para desavisados que entram ao Jodoverse através desta trama, embora eu jamais indicasse que alguém iniciasse a caminhada em torno do Incal por este volume.

Ninguém imaginaria o trágico fim desta sociedade.

O que temos desta vez é Difool acordando de um sonho que ele sabe ter sido importante, mas do qual não se lembra. O personagem resolve tomar uma dose extra da droga Barbax para ativar a memória, mas em uma sociedade vigiada o tempo inteiro, é claro que o controlador de tudo, o Cérebro Central, ficaria sabendo que existe alguém procurando sair da programação, e à medida que a Barbax começa a fazer efeito e Difool lembra de algumas coisas, ele é atacado pelo serviço de vigilância mais próximo. Essas memórias são comprometedoras e podem bagunçar a ordem. Em pouco tempo, porém, o Cérebro Central perceberia que não precisaria de um John Difool para colocar o fim nesta sociedade. Algo bastante corriqueiro como a clonagem do novo Prez é que traria a semente da destruição.

No fim do volume, temos uma noção clara de como olhar para essa renovação de mundos dentro do Jodoverse. Cada realidade é uma consequência da outra e cada indivíduo tem uma missão a cumprir nelas. Deste modo, quando Difool acorda, ele mantém as memórias do que aconteceu — há um bom motivo para isto: ele está envolvido com o Incal –, mas vive em uma realidade que já fora reconstruída, ou seja, este Universo já existiu uma vez (em algo como “outra dimensão”), sofreu mudanças em sua origem e tudo seguiu aparentemente o mesmo rumo, até que veio o despertar (David Lynch usa esse mesmo conceito em Twin Peaks: The Return), onde a ordem estabelecida é [novamente] sacudida e algumas pessoas dão a sua contribuição essencial, como um espelho de outras Eras, vide as aparições do apresentador Diavolo, do Tecno-Papa e seu Ovo Negro, do Cérebro Central, do Prez, dos Aristos…

Mas a realidade reescrita — e agora rachando internamente — tem também um novo núcleo de destruição. É travada uma guerra entre o TECNO e o BIO, que até o presente haviam convivido, mesmo que de forma questionável e controlada por um cérebro ditatorial. Com a mudança, porém, toda a matéria orgânica é dominada por esta anomalia que faz com que a carne entre em decomposição imediata e apodreça a olhos vistos, em questão de minutos. Com o novo Prez androide e os clones iniciais de alguns Aristos, uma Nova Ordem surge, uma ordem metálica, sem matéria biológica para atrapalhar. E claro, Difool é colocado bem no meio desta quebra de padrões, que pela rapidez com que se espalha, pode ser uma ameaça para todo o Universo.

Fantástica arte de Moebius, mostrando o início da nova jornada. John Difool não tem paz em nenhuma das realidades em que ele acorda.

Mais preocupado em mostrar o envolvimento do personagem com a Nova Ordem do que construir, com muitos pormenores, o ambiente onde ele vive — padrão que utilizara na série principal do Incal — Moebius opta por criar um Universo mais duro, um pouco menos caótico (mas ainda assim, caótico) e muitíssimo mais objetivo na representação das casas, massas, subterrâneos e repressão das forças oficiais. Sua diagramação aqui é mais simples, realmente marcando o passo de introdução a um novo Universo. Esta sensação fica ainda mais forte através das cores de Fred Beltran, que destaca o ambiente frio da nova realidade, como um prenúncio da marca tecnológica, robótica, que tomaria conta de tudo.

É realmente de se lamentar que a série tenha sido interrompida após este volume. Por um bom tempo, os leitores ficaram imaginando como poderia acabar esta nova revolução da realidade, até que em 2008, Jodorowsky voltou para concluir a aventura com Incal Final, ao lado do artista José Omar Ladrönn. Neste primeiro degrau de um novo fim, o autor toma uma outra perspectiva, inclusive colocando as forças místicas reféns de uma situação que a todos ameaça, ressaltando que mesmo os poderes superiores precisam da ajuda de umas pessoas especiais para agirem diante de novas ameaças. É esta sensação de coerência de forças — humanas ou não — que faz da série algo muito divertido e tremendamente rico de se ler. Em qualquer realidade que seja, o contato com o Incal é sempre uma iluminação.

Depois do Incal: O Novo Sonho (Après l’Incal T1 : Le Nouveau rêve) — França, novembro de 2000
Publicação original: Les Humanoïdes Associés
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Arte: Moebius
Cores: Fred Beltran
62 páginas

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