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Entrevista | Karim Aïnouz (Olhar de Cinema 2020)

por Luiz Santiago
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Em mais essa entrevista feita por ocasião do Olhar de Cinema 2020, nosso crítico Michel Gutwilen (e como o diretor se refere constantemente à idade do Michel, fica aqui registrado que ele tem 22 anos) conversa com o cineasta brasileiro Karim Aïnouz, sobre o seu filme Nardjes A., exibido no Festival. Foto de destaque: Karim Aïnouz e Nardjes Aili. Abaixo, a entevista.

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[ENTREVISTADOR]: No início do filme, você diz que ele foi filmado ao longo de 24 horas. Na sua entrevista para o site do Olhar de Cinema, você também diz que estava na Argélia por outros motivos até que esse movimento surgiu repentinamente. Eu queria saber o quanto esse filme foi planejado na filmagem e o quanto surgiu na montagem, no pós produção.

[KARIM AÏNOUZ]: Cara, assim, a montagem dele foi muito simples. Eu fui pra Argélia. Meu pai é da Argélia, mas eu nunca tinha ido. Eu fui pra Argélia pela 1ª vez ano passado, fazer um outro filme que não era esse. Era um filme sobre a história da revolução da Argélia, da independência, porque minha família esteve muito envolvida de perto com isso. Era um misto de uma viagem de descoberta de um país que é meu país, mas eu nunca tinha ido… e procurando os traços de uma revolução que era tão importante, uma guerra de independência tão importante. 

Muito por conta do que eu acho que tá acontecendo no Brasil, que é a tomada da extrema direita, a falta de esperança que é o projeto de distopia do Brasil, eu fui atrás da história dessa guerra que é muito utópica, a guerra de independência contra os franceses. Algiers é uma cidade que recebeu revolucionários do mundo inteiro. Fidel Castro foi para lá, Che Guevara foi para lá. Era uma história muito pouco conhecida e eu fui para lá falar através dessa viagem. Meu pai vem das montanhas do nordeste da Argélia e eu fui fazer essa viagem tentar para encontrar a história dessa revolução que é um pouco do porque meu pai conheceu minha mãe, que ele fugiu antes de começar e tal. Então é um projeto muito pessoal. 

Aí coincidentemente, no dia que eu cheguei, uma semana depois, as pessoas começaram a tomar as ruas de Algiers, pedindo um governo mais democrático. Foi meio uma coincidência da vida assim. Fui atrás de uma revolução que aconteceu há 60 anos atrás, aí eu cheguei lá e comecei a presenciar, não vou chamar isso de revolução, mas um levante popular que reivindicava eleições democráticas de governo, então foi meio que um presente da vida. Eu venho atrás de um negócio de 60 anos atrás e a vida me permitiu chegar aqui agora, com 54 anos de idade, para ver um negócio tão rico e lindo. Tinha uma coisa tão emocionante quando eu vi isso que era o fato de que eram muito jovens. Gente da sua idade, cara. Aí eu falei “caralho, tenho esperanças”, e aquilo me comoveu muito, porque era um pouco que eu queria que tivesse acontecendo no Brasil hoje, um levante popular pela democracia e um governo inclusive mais democrático. Aí eu filmei isso. 

Isso aconteceu em 22 de Fevereiro, foi o dia que eu cheguei lá. Aí isso começou a acontecer toda sexta-feira. Eu vi isso dia 22. No dia 1º de Março eu fui filmar, porque fiquei tão tomado por aquilo, achei que era uma coisa importante de documentar, não para fazer um filme nem nada, mas ter de arquivo. Aí a polícia me pegou e falou que eu não poderia fazer aquilo, porque não queriam que isso fosse visto por nenhuma mídia. Era o começo desse levante, aí eu falei “porra, não posso filmar?”. “É proibido filmar e tal” — porque eu estava com uma câmera profissional, já que ia fazer outro documentário. Aí quando me dizem “não”, é aí que eu quero mesmo. Falei “deixa comigo”. Voltei no fim de semana seguinte. Eu achava que era importante ter um personagem que eu pudesse seguir. Aí através de amigos eu encontrei a Nardjes e, na verdade, o que eu fiz foi filmar com o celular, para não ser visto, porque todo mundo tava com celular na mão, ninguém precisava saber se eu tava filmando ou não, se tava para fazer um filme. 

Então foi um filme que foi aconteceu de maneira muito espontânea, montado de maneira muito espontânea. Foi realmente filmado em 1 dia, montado em pouco tempo. É um registro, um documentário no sentido mais literal do termo. Um documento de um levante popular que eu achava que tinha que ser dividido com o mundo e por isso eu decidi mostrar o filme agora no Brasil, em Curitiba, porque eu não acho que ele é um filme que tem que ficar esperando não sei quanto tempo; que fala muito do agora. Ele tem esse caráter urgente. Então foi um pouco assim que ele foi feito e pensado.
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[ENTREVISTADOR]: Eu queria que você falasse dessa decisão de continuarmos seguindo a protagonista mesmo ao fim do protesto, da gente ver ela no restaurante, dançando.

[KARIM AÏNOUZ]: Cara, porque eu não achava que era só um filme… isso também foi muito espontâneo. A gente acabou de filmar a manifestação, primeiro que ela morava longe, era difícil conseguir condução para casa e ela disse que ficava muito emocionada com aquilo, não conseguia dormir. Aí eu falei “que interessante”. Aí a gente foi ficando com ela, até 5 horas da manhã do dia seguinte. Ela foi encontrar as amigas porque as pessoas se perdem durante a manifestação e muitas pessoas vão presas, entende? Então quando acaba o dia eles querem se reencontrar para saber se tá todo mundo bem. Ela foi encontrar aqueles amigos que meio que tinham se perdido. Porque a manifestação, têm momentos dela que não estão no filme, onde fica muito violento, as pessoas são muito violentas, a polícia é muito violenta e tal. Então a gente foi seguindo, porque tinha uma coisa emocional dela muito forte ali, sabe? De estar viva, de ter sobrevivido aquilo, porque é muito perigo mesmo. Pode ser perigoso. A gente decidiu ficar e daí ela resolveu dançar. Aí eu falei “vamo nessa” e foi um pouco por isso que a gente ficou até a manhã do dia seguinte.
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[ENTREVISTADOR]: Você falou agora que tiveram momentos violentos que não foram parar no filme. Isso foi uma decisão sua? De repente de querer mostrar o filme mais como uma obra otimista, esse sentimento de mudança? Ou foi algo externo a você?

[KARIM AÏNOUZ]: Eu acho que a gente tá falando demais de uma palavra que é a distopia. Eu to muito afim de falar de esperança, de utopia. Aí a sensação que eu tive no meio de uma geração, de milhões de pessoas, não só sua geração, mas a maior parte da sua geração, me encheu de esperança, entende? Mesmo que a gente saiba que é uma esperança que dure pouco ou que ela é abortada e tal, mas isso tá muito ligado a uma sensação que eu acho que a gente devia estar lutando agora, um mundo melhor, mais justo, alegre. Você vê que tem uma coisa fantástica nas coisas das ruas de Algiers que me lembra muito o Brasil. A Argélia não é um país árabe, é um país misturado. Tem gente que vem da Turquia, do Saara, que mora lá e é a tribo do meu pai que tá lá há 40 mil anos, dos árabes. Isso tudo me deu uma vontade de decidir que fosse um filme que fosse feito na razão da alegria e da esperança, não da guerra.
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[ENTREVISTADOR]: Quando eu vi o filme, realmente senti a predominância deste sentimento de felicidade mesmo, então faz muito sentido o que você diz. Bem, falamos da Argélia agora e eu queria que você falasse o que acha que há de universal no seu filme, mas o que também há de particular da Argélia.

[KARIM AÏNOUZ]: Acho que de de universal é isso que falei antes, né? Eu acho que de particular tem uma coisa que é muito específica. Assim, as pessoas conhecem muito sobre a história da Argélia, mas eu vou te contar rapidamente em 2 frases: em 62, eles conseguiram expulsar os colonizadores, foi uma guerra onde morreu mais de um milhão e meio de argelinos. Então eu acho que tem uma sensação na Argélia de que é um povo que construiu sua história. Jogaram os franceses para fora e construíram o país deles depois de 150 anos de ocupação francesa. Uma outra coisa que aconteceu foi com a Argélia é que na década de 90 aconteceu uma outra guerra, que foi contra o fundamentalismo islâmico, que na verdade é muito complexo. Não é que teve uma explosão do fundamentalismo islâmico. Foi uma espécie de manipulação do poder do Estado argelino, que criou uma guerra interna onde morreram 200 mil pessoas, se fala muito pouco disso. Você imagina que é um país que passou 150 anos de colonização, uma guerra onde foram executados mais de 1 milhão de argelinos e uma guerra, há 20 anos, onde foram executados 200 mil de habitantes. 

Então é um país que possui uma marca de guerra e luta muito grande, mas que tem um desejo de futuro, do pôr vir e tal. O que aconteceu, entre 2000 e o agora, quando essa guerra civil acabou, existiu um estado de sítio, onde as pessoas não podiam sair na rua e se manifestar. E as manifestações populares contra esse regime não democrático começam a acontecer nos estádios de futebol. Então tem algo pra mim que é muito específico desse documentário e dos cantos que ouvem na rua, a minha sensação de quando eu tava lá ou vejo o filme é que eu quero sair cantando com aquelas pessoas. Isso é canto de estádio de futebol, entende? Eles foram transformados em cantos políticos que vazaram na rua. O único lugar que as pessoas se juntavam era estádio de futebol. O que acho lindo nesse momento histórico é que elas saíram dos estádios de futebol e tomaram as ruas, de maneira pacífica. Se você olha aquelas manifestações, tem uma palavra que é repetida constantemente, que é “pacífico, pacífico, pacífico”. Então acho que isso foi algo que é muito específico, que é um povo que já passou por várias guerras, que reivindica por dias melhores, mas não por meio da violência.
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[ENTREVISTADOR]: Eu estava comentando com outro crítico até que esses cânticos possuem uma força que, mesmo se não houvesse legenda dizendo exatamente quais eram as palavras, eu já entenderia o sentimento geral.

[KARIM AÏNOUZ]: Perfeito. São cânticos de estádio de futebol. Parece que você tá na torcida, né? Tem aquele “aaaahhh”, aquela ginga da torcida.
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[ENTREVISTADOR]: Eu queria que você falasse um pouco de como que surge essa sua decisão criativa de inserir uma protagonista no filme e não só registrar o movimento na rua, de só fazer um documentário a partir de imagens livres.

[KARIM AÏNOUZ]: Porque eu achava que era muito importante que a gente pudesse seguir, estar presente, acompanhar aquela manifestação a partir de uma perspectiva que não fosse a minha. Claro que a minha perspectiva está lá, é evidente, mas que fosse a perspectiva de alguém que tivesse dentro do movimento. Eu não to olhando o movimento, eu não moro lá, eu tava chegando lá. É óbvio que o filme tem tudo isso, ele tem o meu jeito, um deslumbramento com as pessoas, tá tudo na imagem, eu não tentei esconder isso. Mas eu queria muito que a gente acompanhasse de dentro, então pra mim é muito importante que fosse uma militante. A Nardjes tinha algo muito fascinante pra mim, porque ao mesmo tempo que fosse alguém que conseguisse fazer isso e conseguisse ter uma relação com a câmera, de familiaridade, e não pegar qualquer um, porque ela é atriz. Ela é atriz de cinema e teatro. A gente teve uma conversa e fomos apresentados por uma amiga produtora de elenco. E aí eu achei ela muito interessante fisicamente, humanamente, foi 1 semana para gente se encontrar e decidir fazer. E aí ela me fez uma pergunta: “eu topo que você me filme durante o dia da manifestação, mas não me peça para atuar, porque isso aqui é importante demais para eu fazer o papel de outra pessoa”. E aí eu achei aquilo fascinante, e aí foi um pouco essa escolha da gente atravessar esse momento, essa manifestação, a partir de um ponto de vista do personagem, que seja genérico ou que fosse meu. O meu era muito difícil de explicar. Assim como eu acho que é muito mais forte, poderoso que a gente tivesse.. É isso, né cara? 

Meu lugar é de privilégio, eu era alguém que tava lá, que tinha uma câmera e sabia filmar, faz cinema há muitos anos e eu queria usar meu lugar de privilégio para trazer alguém junto comigo. Então eu acho que é um filme meu com ela. A Nardjes tem 26 anos, não é tão jovem como você, mas aquilo é a luta dela. Então acho que é isso. Uma das coisas que eu me prometi não fazer e eu tô fazendo, e eu entendo que tô fazendo pro Brasil, vou fazer isso em outros lugares, é porque eu acho que ela devia estar sendo entrevistada e não eu. Eu me sinto o veículo, quem tá pilotando o carro é ela. Mas eu entendo que as pessoas vão mais pelo nome, tá tudo certo, mas eu sempre insisto. O filme agora vai ser lançado na Itália e eles queriam que eu fizesse uma tour de 8 cidades pela Itália e eu disse: “cara, eu não posso, tem que ser ela”. Só que agora ela não pode ir, porque agora na Argélia não pode entrar nem sair, então não vai poder ir. Então qualquer visibilidade que esse filme tenha, eu sempre tento colocar ela na frente, porque eu acho que o filme é um presente que eu dei para esse país que me deu tanto, de longe, de maneira muito oblíqua, mas eu tenho muita força quando lembro desse país e falo: “caralho, esse país falou ‘vai se fuder’, essa história é nossa, vocês são colonizadores’ é uma força que esse país têm e esse presente é uma força de volta”. Eu acho que é ela que tem que ocupar o palco, não eu.
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[ENTREVISTADOR]: Muito legal esse seu gesto frente a Nardjes e poder registrar este relato na nossa entrevista. Por fim, eu queria te perguntar, como é que você enxerga esse seu novo filme dentro da sua filmografia. Se você acha que ele é mais uma anomalia ou se ele tá em consonância com alguma coisa que você busca no seu cinema de modo geral. Falo isso porque sou muito entusiasta da política dos autores, então sempre gosto de fazer esse tipo de pergunta para os diretores que converso.

[KARIM AÏNOUZ]: [Risos] Eu não sei se acredito nisso, cara. Eu tenho muita desconfiança da política dos autores, eu acho que ela é uma construção patriarcal do sistema francês em  um determinado momento histórico. Eu acho que todos meus filmes tão fazendo anomalias. Eu não era nem suposto a fazer cinema, entendeu? Um homem do Ceará, com a história que eu tenho, gay…  Fazer cinema pra mim nunca foi um negócio possível. Pra mim todo filme é uma anomalia e uma conquista. Eu não fico pensando muito em ter uma escritura. Claro que quando você escreveu 10 livros, a sua letra ela tem uma caligrafia, uma forma, não tem como se você escreve a mão. É isso que tô te dizendo um pouco da Nardjes. “Ah, seus filmes são tão diferentes”. São, eles são muito diferentes, eu tento não me colocar na frente do filme, entendeu? Pra mim, fazer cinema é contar a história de uma personagem, a história é um álibi para falar de um personagem. Se você olha para todos os filmes eles tem um protagonista, não faço filmes de 50 mil tramas. Então eu acho que esse meu filme é coerente com todo meu percurso não de cineasta, mas de ser humano.

“Porra, se eu tenho uma câmera, resolução 4K, tá acontecendo um negócio exuberante na minha frente, eu vou filmar”. Isso é antes de ser cineasta, você entende. Eu acho que todos os filmes são diferentes por conta disso, sabe. Eu acho que o Madame Satã precisava ser de um jeito, o Céu de Suely de outro. Eu tento entender o que as personagens me pedem e o que os contextos que eu faço dos filmes me pedem. “Ah, você faz documentário, ficção”, isso não tem diferença nenhuma, é um jeito de falar do mundo. É claro que quando você fala da política dos atores você vai fazer de um jeito ou de outro, “eu não uso jeans vermelho, eu uso azul”, então é óbvio que vai ter marcas minhas no negócio, é claro que as escolhas são escolhas que não são… eu não to fazendo um filme sobre Roberto Marinho, não que eu tenha nada contra Marinho, mas eu to mais interessado com as pessoas da periferia. Então essa coisa da política dos autores eu acho que é um lugar de fala muito do privilégio. Quando eu era da sua idade e falei pra minha mãe que queria fazer cinema, ela falou: “você ficou louco, é muito caro”. É muito caro o que a gente faz, então todo filme que eu faço é uma alegria. É o que você falou, uma anomalia. Então, nesse sentido, ele é uma anomalia porque todos são uma anomalia.
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[ENTREVISTADOR]: Então, falo isso porque eu vejo no seu cinema filmes sobre pessoas que estão de certa forma buscando algo, perdidas ali, tanto num sentido mental quanto espacial. Vejo isso no Abismo Prateado, no Praia do Futuro, pessoas meio que se sentem alheias em um certo ambiente. Bem, finalizamos então. Muito obrigado, Karim. 

[KARIM AÏNOUZ]: Claro, claro. Fico muito feliz de dar uma entrevista para alguém da sua idade. É para vocês que esse filme é feito, eu que agradeço.

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