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Crítica | A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água, de Jorge Amado

Uma jornada fantástica de estabelecimento do duplo como cisão das regras e condutas cotidianas.

por Leonardo Campos
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Uma novela sobre as múltiplas mortes de um personagem, Quincas Berro D’Água, duplo do funcionário público Joaquim Soares da Cunha, um funcionário público pacato, cuidadoso no trato com a sua família, casado com Otacília e pai de Vanda, representante dos padrões da família tradicional burguesa. As coisas mudam, por sua vez, quando este homem exemplar se transforma num dos vagabundos da cidade, beberrão que se cansa das amarras do casamento e se entrega aos prazeres da vida mundana. O seu novo registro vem de uma situação no mínimo inusitada: nesta fase de transformações, enquanto bebia num bar, tomou por engano um copo com água e cuspiu sonoramente a palavra, esticando todas as suas versões da vogal a. Com isto, tornou-se o Quincas Berro D’agua, figura singular da literatura brasileira do século XX, parte integrante da fase posterior ao movimento panfletário de Jorge Amado, associado ao partido comunista. Publicado entre Gabriela Cravo e Canela e Os Velhos Marinheiros ou o Capitão de Longo Curso, A Morte e A Morte de Quincas Berro D’agua é uma das produções literárias mais humoradas do escritor baiano, o que não impede que críticas sociais contundentes sejam apresentadas aos leitores ao longo de seu breve e delicioso itinerário de 59 páginas.

Como dito, o protagonista que nomeia a história é um funcionário público que cansa das amarras da vida que lhe é ofertada. Trajando farrapos e meias sujas e rasgadas, ele é encontrado por uma nova amiga, morto, depois de ter prometido a entrega de umas ervas. Ao chamar o médico, a constatação. Quincas está morto. Esta é a sua segunda morte, pois a primeira é a falência moral, haja vista o abandono da família para se meter numa vida de farra e álcool. Diante da situação, a família decide honrar o legado, criando um velório digno para o personagem, empreendido por sua filha Vanda. A ideia é rememorar os anos de adequação do pai diante das normas e regras de conduta sociais, seguidas piamente, antes da mudança de perspectiva. No caixão, o morto parece ironizar tudo ao seu redor. Sua feição aparenta risos, causando estranhamentos daqueles que gravitam em torno do espaço para o último adeus ao homem fanfarrão.

As coisas mudam com a chegada de seus amigos de badalação pelas ruas e vielas de Salvador: Cabo Martin, Curió, Negro Pastinha e Pé-de-Vento, além de sua amante Quitéria do Olho Arregalado, a mais sentimental do grupo, a sentir saudades do homem que a proporcionou momentos de intensidade e paixão. Eles representam a crítica de Jorge Amado aos valores burgueses, por meio do deboche desenvolvido em diversas passagens. O narrador onisciente, em terceira pessoa, critica uma existência estruturada nas aparências. Quando contemplam as feições de Quincas, os amigos o carregam para uma nova jornada pela cidade, culminando no passeio de barco que enfrenta uma tempestade. Alguns dizem que o personagem se jogou ao mar, outros contam que a situação foi diferente. Neste misto de versões, temos a terceira e definitiva morte do protagonista, uma fascinante saga moderna com elementos fantásticos.

Nesta novela, Jorge Amado narra um lado absurdo da vida, numa análise do duplo de nossa sociedade, entre a ordem e a desordem, a primeira galgada no casamento, na família e no trabalho, sustentados mesmo que a perspectiva seja de infelicidade e, o segundo, caótico, responsável por carregar Quincas para o além, definindo a sua morte. Assim, com o estabelecimento do duplo, temos a cisão do personagem principal. O sobrenatural rompe a ordenação e impõe binômios em cena, tais como burocracia e boêmia, normalidade e transgressão, numa contemplação do duplo que se dedica a libertar os personagens de seus medos, angústias, repressões e permitir uma válvula de escape para a rotina sufocante. Inicialmente publicado em 1959, na revista Senhor, a história ganhou ilustrações de Di Cavalcanti e de Glauco Rodrigues, em edições diferentes, numa demonstração do movimento cultural interessado em traduzir o livro para outros suportes artísticos e narrativos. Além do filme de 2010, dirigido por Sérgio Machado, A Morte e a Morte de Quincas Berro D’agua também inspirou muitos projetos educacionais, além do famoso caso especial exibido pela Rede Globo em 1978.

A Morte e a Morte de Quincas Berro D’agua (Brasil) — 1935
Autor: Jorge Amado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 59

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