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Crítica | Guerra Nuclear: Um Cenário, de Annie Jacobsen

Estamos nas mãos de loucos.

por Ritter Fan
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Já mencionei isso antes em alguma outra crítica, mas um dos filmes que mais me marcou ainda em tenra idade foi, na verdade, uma produção feita para a televisão, O Dia Seguinte, que lida com guerra nuclear a partir do ponto de vista de uma pequena cidade dos EUA. Lançado em 1983, quando a Guerra Fria estava bem quente, e em meio a uma onda de filmes pós-apocalípticos e no mesmo ano do também assustador Jogos de Guerra, o filme dirigido por Nicholas Meyer trouxe um grau de realismo inédito a algo que permeava o imaginário popular, mas que ainda parecia distante, servindo como um tratamento de choque que, de uma maneira ou de outra, deixou muita gente em alerta mesmo que pouco pudesse ser feito na prática, já que estávamos – como ainda estamos – nas mãos de alguns poucos governantes capazes de trazer o fim do mundo com o mero apertar de um botão.

Corta para os anos 2020 e sinto a tensão que senti nos anos 80 e que esfriara consideravelmente com a queda do Muro de Berlim reaparecer com força total com dois países com arsenal nuclear envolvidos em conflitos bélicos complicados – um no Leste Europeu, outro no Oriente Médio – e de difícil, provavelmente impossível resolução sem uma escalada maior ainda que pode levar ao emprego de armas de destruição em massa. Corta novamente para pouquíssimo tempo atrás quando soube do lançamento do livro Guerra Nuclear: Um Cenário, pela jornalista investigativa e autora americana Annie Jacobsen que, conforme circula por aí, ganhará uma adaptação cinematográfica por ninguém menos do que Denis Villeneuve e pronto, quando me dou conta, estou em plena leitura da obra xingando-me a cada virada de página.

O que Jacobsen faz chega a ser cruel. Começando com a detonação de uma bomba nuclear em Washington D.C., com a descrição realista, detalhada e pesada dos efeitos causados em construções, pessoas e animais, de maneira a prender o leitor de imediato em meio às mortes sem sentido, ela retrocede um pouco no tempo para falar da insana corrida armamentista pós-invenção da bomba – conforme vimos recentemente no premiado Oppenheimer -, nos planos de ataque e de defesa nuclear surgidos em uma reunião secreta em 1960 e no derramamento de dados precisos sobre o tamanho do arsenal atômico dos EUA, Rússia e demais sete países nucleares (no momento). Quando ela retorna ao cenário do presente de sua hipótese de guerra nuclear iniciada por um ataque não provocado aos EUA pela Coréia do Norte, o que segue é uma abordagem quase que completamente minuto a minuto ao longo de meros 72 minutos em direção ao apocalipse.

Seria alarmismo por parte da autora? Olha, mesmo que seja e mesmo que a hipótese que ela construa e desenvolva possa ter problemas para alguém com conhecimento profundo sobre o assunto, se 10% do que ela descreve acontecer, o mundo como o conhecemos acabará e tudo o que restará será um retorno a um momento pré-civilizatório para a humanidade. Sua premissa de que uma guerra como essa começaria via Coréia do Norte vem do mistério absoluto sobre o país e do elemento de imprevisibilidade e, sejamos sincero, insanidade representado pelo líder supremo de lá, além da quase inacreditável descrição que Jacobsen faz do poderio nuclear do país que, mesmo diminuto se comparado com o dos EUA e Rússia, é, no cenário em que ela trabalha, suficiente para acabar com tudo ou iniciar o fim, pelo menos. Afinal, ela usa constantemente a variação de uma frase clássica atribuída à Madame de Pompadour ou a Louis XV, como o retrato do egoísmo humano que poderia levar ao apertar do fatídico botão nuclear: “Après moi, le déluge.” ou, em tradução direta, “Depois de mim, o dilúvio.” ou, em bom português sem papas na língua, “Que se dane o que acontecer depois que eu morrer.“, pensamento que nós mesmos temos quando cotidianamente quando, por exemplo, consumimos plástico e jogamos fora nos oceanos e outras coisas assim.

Usando acesso a documentos que saíram recentemente de sigilo nos EUA e dezenas de entrevistas ao longo de anos com pessoas diretamente envolvidas com o programa nuclear americano, com constantes citações diretas a eles, a autora é bem sucedida em sua tarefa de mostrar cabalmente que estamos muito mais próximos do fim do que podemos imaginar e que não precisa de muito para que o “botão de pânico” seja ligado pelos governos nucleares para que o dilúvio venha em uma situação que não comporta vitória de qualquer parte e que dizimaria bilhões de seres humanos em um período curtíssimo de tempo. Afinal, em seu cenário calamitoso, a maior guerra do mundo de longe seria também a mais curta de longe, levando menos do que a duração de um longa-metragem, fazendo o mundo mergulhar no que seria o retorno à Idade da Pedra, isso se algum humano sobreviver.

Jacobsen desmistifica coisas que vemos cotidianamente em filmes, como a possibilidade de se “desligar” mísseis nucleares balísticos intercontinentais já lançados, a existência de uma defesa eficiente em caso de ataques como esse e o tempo ridiculamente curto (seis minutos!!!) que o presidente de alguma superpotência teria para tomar uma decisão desse naipe. No mesmo fôlego, ela traz elementos menos conhecidos que amplificam os horrores, como o uso de pulsos eletromagnéticos a partir de uma explosão nuclear na ionosfera que teria o poder de acabar completamente com a eletricidade e a fragilidade do plano de “continuidade de governo” dos EUA, capaz de desmoronar com um mero atraso no processo de evacuação. Da mesma forma, ela destroça o patético conceito de persuasão (deterrence, em inglês), na prática a única “política” envolvendo armamento nuclear no mundo, e que consiste em unicamente aumentar o número de armas nucleares para que haja um suposto equilíbrio entre as mega-nações nucleares de forma que uma sequer pense em atacar a outra. É confiar demais no bom senso, não é mesmo?

É importante apenas lembrar que o livro, apesar de ser narrado como um thriller de guerra, é, em essência, um trabalho jornalístico. Isso torna a leitura muito fácil – esquecendo o tema por um momento, claro, pois não tem nada muito fácil em ler sobre a destruição realista do mundo – e ritmada, especialmente porque ela estrutura sua obra em três grandes partes, cada uma abordando 24 minutos da guerra em capítulos muito curtos que pedem que continuemos até o fim, quase em uma sentada só. Os nomes de pessoas e lugares que ela cita são reais, os primeiros suas fontes e os segundos locais verdadeiros, mas os “personagens” da obra, apesar de existirem, não têm nomes, sendo chamados, apenas, por seus cargos. Aliás, pela natureza da obra, não é nem exatamente possível chamá-los de “personagens” – daí as aspas -, pois eles sequer têm qualquer tipo de desenvolvimento, existindo muito mais por razões estilísticas do que por qualquer outra coisa, talvez para evitar uma narração fria e distanciada.

Mas essa escolha estrutural de Jacobsen leva a alguns pequenos problemas. Primeiro, há muitas repetições, algo que é quase natural em razão dos capítulos curtos, mas que chega ao ponto de ser sensível e incômodo. Depois, há um grau elevado de didatismo, algo que reputo importante para nivelar todos os leitores sobre as siglas, conceitos e fatos históricos que povoam a narrativa, mas que pode cansar muita gente, mesmo considerando que a leitura é dinâmica pela forma como ela escreveu seu livro. Além disso, existe sim um fundo alarmista e fatalista, com a autora basicamente dizendo que o que ela prevê acontecerá de uma maneira ou de outra, amanhã ou em algum futuro razoavelmente próximo. No entanto, tenho para mim que se trata de um alarmismo justificado. Nós temos que saber o que é possível que aconteça para que possamos raciocinar e compreender a fragilidade de nossa existência em razão de uma meia dúzia de países que controlam o destino do planeta. A opção a isso é a completa ignorância, o que, reconheço, pode ser a melhor opção ou, pelo menos, a que causa menos ansiedade.

Por tudo isso, Guerra Nuclear: Um Cenário é um livro que, contraditoriamente, eu não posso recomendar a ninguém, mas que é, ao mesmo tempo, indispensável. Não recomendo, pois cada página virada, cada minuto de guerra que a autora descreve e cada detalhe aterrador que ela aborda é receita para o coração palpitar mais fortemente e reagirmos da única forma possível, uma espécie de resignação composta por um sentimento de completa impotência e de estarmos à mercê de uma meia dúzia de lunáticos. Indispensável porque conhecimento é a única saída para a estupidez humana, mesmo que a proverbial luz no fim do túnel quase não mais consiga iluminá-lo. O Dia Seguinte pode ter sido angustiante e assustador em sua época, mas é inacreditável notar que não só nada mudou desde então, como tudo piorou exponencialmente. E, pior, o dia seguinte pode ser tão cedo quanto amanhã.

Guerra Nuclear: Um Cenário (Nuclear War: A Scenario – EUA, 2024)
Autoria: Annie Jacobsen
Editora: Dutton Books
Data original de publicação: 26 de março de 2024
Páginas: 400

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