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Crítica | A Caixa de Pandora (1929)

por Ritter Fan
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Existem muitos filmes com elencos maravilhosos, alguns com atores ou atrizes de enorme destaque dentro de sua estrutura e um punhado em que esse ator ou atriz se torna sinônimo da obra que estrela. E, finalmente, existe Louise Brooks em A Caixa de Pandora.

Exagero? Nem de longe. Brooks não só representa a mítica primeira mulher humana criada por Éfeso por ordem de Zeus, conforme a mitologia grega, como ela simplesmente é a essência da obra do austríaco G.W. Pabst, considerado um dos grandes exemplares da filmografia da era da República de Weimar, na Alemanha. Seus pares, porém, são, majoritariamente, filmes expressionistas como os sensacionais O Gabinete do Dr. Caligari, O Golem e Metrópolis que, porém, simplesmente não “casam” com A Caixa de Pandora em termos estilísticos. Aqui, o trabalho de Pabst camba muito mais para um realismo lírico, diria até onírico, mas ancorado em uma pegada niilista, representada pela “abertura da caixa” – no caso a própria Pandora – que solta todos os males no mundo, restando, apenas, a esperança.

Mas, mais importante do que deixar suas expectativa em xeque sobre o que esperar do filme, é apreciar Lulu, o nome de Pandora na obra, vivida por Louise Brooks. Quem é exatamente Lulu? Pela forma como ela é introduzida, no apartamento de seu amante, mas recebendo um senhor mais velho e maltrapilho que ela apresenta como seu “primeiro patrono”, é razoável concluir que ela é uma cortesã, ou, em português claro, uma prostituta. Mas será mesmo? O roteiro de Ladislaus Vajda, baseado em duas peças teatrais de Frank Wedekind, não é explícito, mas também não esconde nada. Ele joga para nossa interpretação, algo que Pabst sabiamente também mantém no ar pela forma como ele enquadra Lulu e, especialmente, pela maneira como Brooks a vive. Sim, ela diz que Schilgolch (Carl Goetz) é seu pai em determinado ponto, mas isso em nada altera o raciocínio de que ele poderia ser seu pai e mais do que isso, não é mesmo?

A partir desse ponto introdutório sensacionalmente dúbio, há uma sucessão de escolhas feitas por Lulu, mas também por seu amante Ludwig Schön (Fritz Kortner), com remorso por ter que largá-la para casar, que levam a situações cada vez mais graves e complicadas, com os três primeiros atos (o filme é explicitamente dividido assim) lidando com o que poderíamos chamar de ascensão de Lulu e os demais com sua inevitável e vertiginosa queda. Nessa trajetória, em termos narrativos, o filme não é particularmente diferente ou sensacional. O que o torna algo memorável é mesmo Louise Brooks.

A atriz americana era o que se pode chamar de “espírito independente”, tendo largado Hollywood e bandeado-se para a Europa, sob as asas de Pabst, o que lhe garantiu, em retrospecto, a verdadeira imortalidade artística, algo que provavelmente não conseguiria em seu país natal, pelo menos não de forma comparável. E essa imortalidade veio já com A Caixa da Pandora, seu primeiro filme do outro lado do oceano, ainda que a recepção da obra tenha sido alquebrada, com inúmeras versões dela sendo distribuídas para diferentes países, algumas levando à sua incompreensão pelos críticos, notadamente os americanos. A versão “média”, considerada como a versão do diretor, é a que foi objeto da presente crítica e ela revela uma história sólida, com claro começo, meio e fim e um movimento clássico de ascensão e queda da protagonista. Mas o que realmente interessa é a mistura de inocência, libidinosidade, ambição, esperteza e generosidade que atravessa o rosto e a expressão corporal de Brooks, mas sem que ela nunca pareça estar fazendo sequer um iota de esforço para atuar. Em poucas palavras, o que ela faz no filme chega a ser desconcertante de tão perfeito, com a atriz no comando diria até incomum das sequências em que aparece (praticamente todas), não deixando espaço para mais ninguém sequer ameaçar sua presença de palco, algo que Pabst percebe muito bem e manobra de maneira precisa em seus enquadramentos.

É curioso notar, porém, como mesmo a atuação de Brooks teve uma recepção fria originalmente, com críticos afirmando, ao contrário, que ela simplesmente fazia o que hoje chamaríamos de “cara de paisagem”. Essa visão, porém, ao longo das décadas, evoluiu muito e Brooks foi reconhecida pelo que ela faz aqui, ajudada pelo seu corte de cabelo característico – que ela já usava nos EUA, influenciando inclusive outras atrizes e criando moda – e sua postura ao mesmo tempo assertiva e dependente, com toques de manipulação. Por isso é que a dubiedade do roteiro sobre a natureza de Lulu é preservada também ao longo da película. Brooks, em seu papel, pode ser encarada tanto como uma serpente (a do Paraíso e a literal) quanto um anjo flutuando de acordo com a direção do vento e até mesmo alguém cruelmente manipulada. Podemos ver Lulu como um símbolo feminino muito além de seu tempo, mas também podemos vê-la como a “princesa em apuros” que precisa fiar-se em um homem para estabelecer-se e essa interpretações, estranhamente, não são excludentes e muito menos maniqueístas. Além disso, para um filme de 1929, há um subtexto homossexual muito presente e encapsulado pela presença “masculinizada” de Alice Roberts, como a Condessa Augusta Geschwitz, sempre vestida de terno ou fraque e claramente apaixonada por Lulu, paixão essa que, se não é correspondida na mesma moeda, ganha pelo menos alguma receptividade ou – se assim quisermos ver – é usada para dar cabo dos interesses de Lulu.

Pabst, como disse, sabia o que tinha diante de sua câmera e ele a rege com sua mira em Brooks, obtendo, com isso, o melhor efeito possível e transformando completamente seu filme que, de outra maneira, poderia passar despercebido. Mas calma, pois com isso eu de forma alguma quero colocar em dúvida a técnica de Pabst. Seria muita pretensão e cegueira minha. Muito ao contrário, o mero fato de o diretor ter identificado essas qualidades em Brooks com mais precisão do que qualquer outro diretor antes dele já começa a separar o joio do trigo. Mas há mais. As composições cênicas dele não são menos do que espetaculares também. Isso fica evidente, principalmente, nas sequências em que ele trabalha com uma quantidade grande de extras em cena, particularmente na première da peça musical que tem Lulu como estrela e na festa de casamento de Schön. Os planos-sequências longos são de tirar o chapéu, com um coreografia de bastidores que remete ao trabalho titânico de D.W. Griffith em Intolerância, mas em escala bem menor, claro.

No entanto, talvez Pabst tenha caído em sua própria armadilha e, ao querer mostrar muito, mostrou demais. Cada uma das duas sequências acima é longa, indo muito além do necessário para enquadrar narrativa a questão sendo abordada. E, na segunda metade da projeção, essa situação torna-se ainda mais evidente, já que, tematicamente, as novidades desaparecem e o diretor acaba repisando assuntos que clamam por mais economia. Isso é particularmente claro na sequência da jogatina dentro de um navio e, depois, nos momentos que antecedem a introdução de Jack, o Estripador  (aliás, só para deixar bem claro, tudo o que acontece após a entrada desse personagem, vivido por Gustav Diessl, é fenomenal). É como ver um carro patinando, sem sair do lugar, o que empresta uma lerdeza à narrativa que pode cansar o espectador que não estiver completamente imobilizado em seu assento pela atuação hipnótica de Brooks. Não há, infelizmente, um corte sequer de A Caixa de Pandora que resolva esse problema. Ao contrário, todas as alterações feitas (pelo menos as que tive oportunidade de conferir) não só não resolvem essa questão, como criam ou agravam outras.

Com isso, a duração não tão exagerada assim do corte do diretor, de 133 minutos, acaba demorando mais do que o comum para passar e tem sua fluidez levemente interrompida por momentos que se alongam no tempo sem efetivamente trazer algo que beneficie a construção narrativa. Ainda são momentos para serem admirados pela técnica de Pabst, notadamente, como já mencionei, as sequências com muitos atores e extras em cena, mas elas acabam servindo de freio para uma obra que, de outra forma, essencialmente graças a Brooks, poderia ser perfeita.

A Caixa de Pandora é um daqueles filmes essenciais para qualquer cinéfilo que se preze, gostando ou não do resultado. É um dos raros exemplares audiovisuais em que a atriz não só se confunde com a protagonista e com o que ela representa, mas também em que essa fusão é tão integral que o próprio filme em si é a atriz. Louise Brooks é Lulu, Pandora, a caixa, tudo o que sai da caixa e, finalmente, também A Caixa de Pandora, apagando – ou talvez minimizando, só pela minha deferência à Pabst – todas as demais considerações.

A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, Alemanha – 1929)
Direção: Georg Wilhelm Pabst (G.W. Pabst)
Roteiro: Ladislaus Vajda (baseado nas peças de Frank Wedekind)
Elenco: Louise Brooks, Fritz Kortner, Francis Lederer, Carl Goetz, Krafft-Raschig, Alice Roberts, Daisy D’ora, Gustav Diessl, Michael von Newlinsky, Sigfried Arno
Duração: 133 min. (versão do diretor – objeto da presente crítica), 100 a 152 min. (outras versões)

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