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Crítica | A Cronologia da Água

A dura reconstrução de uma vida despedaçada.

por Ritter Fan
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Apesar de ter despontado para o mundo com a risível Saga Crepúsculo, Kristen Stewart nunca realmente se acomodou como atriz, intercalando papeis mais “comuns” com escolhas desafiadoras como em Personal Shopper, Spencer (que lhe valeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz) e Love Lies Bleeding – O Amor Sangra. Não satisfeita, ela vagarosamente arriscou no roteiro e direção de curtas a partir de 2014 e, agora, certamente se sentindo preparada para o desafio, tentou sua sorte em um longa-metragem, elegendo ficar somente atrás das câmeras, o que deixa evidente sua maturidade. Como se isso não bastasse, no lugar de levar às telonas um material mais simples e mais palatável a um público amplo, ela decidiu adaptar, ao lado de Andy Mingo, a festejada autobiografia A Cronologia da Água que Lidia Yuknavitch publicou em 2011 e que fala sobre abuso sexual paternal, vício em drogas, sadomasoquismo, perdas e um sem-número de outros assuntos pesados, complexos e de difícil digestão.

O resultado dos esforços de Stewart, apesar de alguns problemas aqui e ali que abordarei mais à frente, nem parecem os de uma diretora e roteirista estreante em longas. A atriz transformada em cineasta realmente escolheu trilhar um caminho difícil em todos os sentidos, seja no material fonte, seja na forma como ela o desenvolveu, criando uma costura de memórias da protagonista Lídia de sua infância até sua idade adulta em um lar com um  pai que abusava sexualmente da irmã mais velha que, por isso, sai de casa, deixando-a, então, à mercê do predador, com sua mãe omissa e mergulhada em álcool. Seu único refúgio inicial é a natação, que lhe garante uma bolsa na Universidade do Texas que acaba representando o primeiro momento em que ela encontra um semblante de liberdade, algo que ela, diante de tudo o que passou, não tem capacidade psicológica de aproveitar, entregando-se a uma vida desregrada e autodestrutiva em que tudo o que se relaciona com genuíno carinho e compreensão é repelido, como se ela sequer conseguisse compreender o conceito. A única coisa que mantém um pouco de seus pés no chão é escrever, seu segundo refúgio, e é a partir dessa descoberta que ela começa uma jornada de autodescoberta que é, porém, repleta de obstáculos.

O que Stewart cria é um perturbador e inquietante mosaico de lembranças que não exatamente é linear, com as percepções de realidade da protagonista misturando-se com a efetiva realidade enquanto ela tenta entender quem ela é e como exatamente anos de trauma a afetaram. A angústia de Lidia é a angústia que o espectador é levado a sentir com a diretora experimentando com formatos, com câmeras, com movimentações que nunca permite paz à protagonista, nunca exatamente a deixam serena e pensativa sem que por trás seja possível detectar um cérebro com as sinapses em franca atividade. É bem verdade que a diretora fez escolhas estilísticas que podem soar pedantes para uma marinheira de primeira viagem, como por exemplo filmar em razão de aspecto 3:4, ou seja, o que era padrão na indústria nos anos 80 e começo dos anos 90, que é justamente quando boa parte do longa se passa, ou abusar da correção de cores, granulação, mudança de tipo de filme usado e assim por diante, mas tenho para mim que, mesmo havendo exageros, há uma lógica por trás, primeiro a de localizar temporalmente as memórias de Lidia e, segundo, a de refletir visualmente sua confusão mental, sua ansiedade, seu verdadeiro desespero que a faz tomar decisões terríveis em sua vida. No lado do roteiro, faltou equilibrar melhor a última parte do longa que parece rápida e conveniente demais, como algo filmado para caber em um número mais restritivo de minutos porque a diretora não queria cortar nada do que veio antes.

Mas é claro que não haveria A Cronologia da Água sem Imogen Poots fazendo o papel principal. A atriz que, assim como Stewart, vem tentando ampliar seus horizontes dramáticos com escolhas de papeis menos óbvios, foi uma escolha mais do que acertada para viver Lidia a ponto de o único comentário negativo que tenho a dizer nem se refere à atriz, mas sim à escolha de Stewart de usar Poots como Lidia de adolescente até adulta sem nenhum tipo de ajuda de maquiagem de envelhecimento para além de penteados cada vez mais desgrenhados. Tirando esse aspecto que nem é tão relevante assim, Poots constrói uma personagem aflitiva, rica na complexidade de sentimentos e assustadoramente ciente de quem ela é, o que só aumenta sua tortura que a leva até mesmo a ficar excitada pensando no abuso cometido pelo pai contra ela e a procurar o sadomasoquismo em determinada altura. É impressionante como a atriz parece natural nas várias fases da vida de sua personagem, demonstrando um medo terrível enquanto vivia com os pais, depois um desleixo autoflagelante completo, encontrando apenas alguns momentos de equilíbrio, como quando ela participa da aula de literatura de Ken Kesey (Jim Belushi muito bem no papel do grande escritor americano falecido em 2001).

Não sei se a intenção de Kristen Stewart é continuar equilibrando sua vida de atriz com a de diretora e roteirista como outros atores como Clint Eastwood e Greta Gerwig fizeram, mas, se A Cronologia da Água é alguma indicação, ela tem potencial de ter uma carreira de respeito também atrás das câmeras. Eu sei que eu estou pronto para mais obras da cineasta Kristen Stewart!

A Cronologia da Água (The Chronology of Water – EUA/Reino Unido/França/Letônia, 2025)
Direção: Kristen Stewart
Roteiro: Kristen Stewart, Andy Mingo (baseado em autobiografia de Lidia Yuknavitch)
Elenco: Imogen Poots, Thora Birch, Earl Cave, Michael Epp, Susannah Flood, Kim Gordon, Jim Belushi, Julienne Restall, Tom Sturridge, Anna Wittowsky, Esmé Creed-Miles
Duração: 128 min.

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