Recentemente, o cineasta iraniano Mohammad Rasoulof teve que filmar seu A Semente do Fruto Sagrado completamente em segredo, no estilo de filmagem de guerrilha, em Teerã e imediações. Ali Asgari, também iraniano, quando voltou da exibição de seu Crônicas do Irã em Cannes, em 2023, teve seu passaporte recolhido pelas autoridades de seu país, como forma de represália. E esses são apenas dois exemplos recentes de uma série de outras situações de censura ao audiovisual e àqueles que criam essas obras – alguns levados ao aprisionamento – da teocracia islâmica ditatorial em vigor no Irã desde os anos 70 e é isso que, com muito humor e leveza, A Divina Comédia, do citado Ali Asgari, procura retratar.
Passado durante um único dia em que o diretor de origem turco-azerbaijana Bahran (Bahman Ark) vai para todo o lado de carona na motoneta rosa de Sadaf (Sadaf Asgari, sobrinha do diretor), jovem de cabelo azul que precisa escondê-lo debaixo do capacete, para tentar obter autorização das autoridades competentes para exibir seu recém completado filme, o que é negado por sua obra não ser falada em persa e sim em turco e por dar destaque a um cachorro, exigindo que a dupla faça de tudo para burlar a proibição, o filme marca cada “final de trecho nas ruas de Teerã” com um longo diálogo de Bahran com alguém, começando pelo burocrata inicialmente sem rosto que lhe nega a autorização. Cada um desses diálogos com câmera parada e em plano médio ocorre em um lugar diferente e o humor é sempre de ironia fina, com ferroadas tanto no governo controlador como em personalidades endinheiradas que Bahran encontra pelo caminho, seja um ator que basicamente não sabe nada de seu ofício ou seu próprio irmão, também cineasta, que se curvou completamente às exigências da burocracia para ter seus filmes no estilo “blockbuster genérico de Hollywood” exibidos em seu país.
Com uma riqueza de referências ao cinema mundial – inclusive e especialmente a Matrix, que é muito bem usado no longa – A Divina Comédia é Bahran percorrendo os nove círculos bem humorados do inferno para conseguir algo tão trivial quanto projetar seu filme para uma audiência maior do que ele mesmo, Sadaf e o restante de sua equipe técnica. O labirinto burocrático com exigências completamente imbecis somado à incompreensão generalizada sobre o tipo de obra mais autoral que Bahran produz é enervante, quase surreal, que mantém o protagonista e sua fiel escudeira em uma espécie de labirinto kafkiano que não tem saída, só mesmo portas fechadas que impedem o acesso a qualquer coisa minimamente civilizada, algo que Asgari faz questão de contrastar mantendo a atmosfera leve, algo que a direção de fotografia emula com tomadas iluminadas e até esperançosas.
O roteiro, coescrito por Asgari e Alireza Khatami repetindo a parceria de Crônicas do Irã e Ta Farda (este sem título em português) é um primor de acidez delicada em que as frustrações de Bahran vão se amontoando a cada problema que encontra, com Bahman Ark mantendo sempre o semblante sério na linha do humor deadpan. Se é perfeitamente possível encarar a primeira interação de Bahran como algo que deve acontecer na vida real no Irã com constância, o que vem a seguir começa a caminhar na direção do absurdismo, sem realmente mergulhar por completo nele, como é a vigilância à la Grande Irmão a que Bahran passa a ser alvo assim que sai do órgão censor e que conta até com um helicóptero, pegando o espectador de surpresa, mas sempre de maneira consideravelmente leve, mas não menos amarga. É, sem dúvida alguma, um roteiro metalinguístico com Ali Asgari e possivelmente também Alireza Khatani (também iraniano, mas que mora no Canadá) transferindo para as páginas de texto suas próprias frustrações, com Bahran obviamente sendo um avatar de Asgari.
A Divina Comédia é uma “comédia séria” que é capaz de divertir o espectador na mesma medida em que é capaz de assustá-lo pelos componentes reais que acontecem cotidianamente no Irã e outros países com esse grau de controle da liberdade de expressão. E, claro, ele serve de alerta bem-humorado para outros países supostamente respeitosos desse direito tão maltratado que com muita facilidade poderiam trilhar caminho semelhante.
A Divina Comédia (کمدی الهی / Komedi-e elāhi – Irã/Itália/França/Alemanha/Turquia, 2025)
Direção: Ali Asgari
Roteiro: Ali Asgari, Alireza Khatami
Elenco: Bahman Ark, Sadaf Asgari, Hossein Soleimani, Mohammad Soori, Amirreza Ranjbaran
Duração: 98 min.