A atual fase de Doctor Who, com Russell T. Davies novamente à frente do universo da série (desta vez, meio perdido; meio patinando), abriu espaço para a minissérie A Guerra Entre a Terra e o Mar, um projeto sem a presença direta do Doutor e que aposta em conflitos sustentados por instituições, crises globais e consequências políticas. Essa empreitada spin-off traz novamente os Sea Devils, renomeando-os como Homo Aqua, a um mundo fustigado por colapsos ambientais, disputas geopolíticas e um histórico de exploração e poluição sistemática dos oceanos. A escolha do tema é coerente com a tradição da franquia, que desde a Série Clássica utiliza a ficção científica como ferramenta de alerta social e debates sobre coisas que interessam aos humanos como espécie, especialmente quando o comportamento de nossa civilização se torna agente ativo da própria destruição.
Nesses dois episódios inaugurais do projeto, Homo Aqua e Plastic Apocalypse, a temática ambiental se torna o eixo da narrativa. A urgência do assunto é óbvia, para nós, e o recorte escolhido oferece material fértil para um spin-off que pretende dialogar com o presente, brincando com tudo aquilo que o universo de Doctor Who tem para oferecer. O problema está na forma como esse discurso ganha corpo dramático. Em vários momentos, mais do que eu gostaria de admitir, os diálogos e mesmo a base da história se mostram risíveis, forçados, sem jeito, mal ajustados a uma tese de defesa das águas, do ar, da flora e da fauna, linha crítica que exigiria maior densidade social e política. A escrita parece gostar muito mais de dar explicações diretas do que desenvolver a tensão analítica, enfraquecendo a força das situações que propõe.
Isso fica particularmente evidente no início do primeiro episódio, que estabelece o contato tenso entre humanos e Sea Devils e prepara a gota d’água para a guerra que se declara no episódio seguinte. Vi ali, guardadas as devidas proporções, um pouco da dinâmica de Shin Godzilla, especialmente na tentativa de articular diferentes setores do poder estatal diante de uma ameaça complexa e cheia de facetas, na terra e no mar. Esse potencial aparece nas cenas iniciais de negociação e resposta emergencial, mas logo se dissolve quando o roteiro opta por discursos mais explícitos e rasos sobre culpa ambiental e responsabilidade histórica. Em Plastic Apocalypse, o problema se repete em sequências que deveriam intensificar o conflito, mas acabam interrompidas por momentos que funcionam mais como enunciados temáticos (bandeiras de militância chata) do que como ação dramática. E nesses casos, o resultado é sempre vergonhoso.
Tecnicamente, a produção é sólida, cheia de tons verdes e azulados, com bela direção de fotografia e maquiagem, além de uma variedade de desenhos para os Sea Devils, mostrando que eles convivem com variados indivíduos em processos diferentes de evolução, a ponto de serem “outras espécies“. Há valor evidente na encenação, no desenho de produção e som, e na construção de um cenário que tenta dar conta de uma crise em escala global (esse peca um pouco, mas nada que tire pontos dos episódios, a meu ver). O elenco sustenta bem esse esforço. Russell Tovey, como Barclay Pierre-Dupont, fica bem nas piscadelas cômicas, que têm charme e ritmo próprio, embora o jeito meio bobo do personagem só funcionaria realmente se ele fosse bem mais jovem, já que a caracterização atual cria um descompasso com a gravidade da situação. Jemma Redgrave, como Kate Lethbridge-Stewart, traz estabilidade, autoridade e uma presença que ancora a narrativa quando o texto perde firmeza. Gosto muito da personagem e da atriz, só lamento que ela não receba a responsabilidade e a atenção que merece.
A presença da UNIT organiza a minissérie em torno de uma resposta institucional ao conflito, ligando a narrativa a outras forças e poderes ao redor do mundo e ampliando o campo dramático para além de um embate isolado, me fazendo até mesmo lembrar, com arrepios e tudo, da Era Chibnall. Esse desenho grandioso para a instituição lembra caminhos já explorados em produções da Big Finish, como UNIT – 1ª Temporada (2005) e UNIT: Dominion (2012), que souberam trabalhar com primor a força-tarefa em contextos políticos mais complexos. Aqui em A Guerra Entre a Terra e o Mar, o potencial desse recorte é bem claro, embora o roteiro ainda não consiga sustentá-lo com a maturidade necessária. O que se vê nesses dois episódios iniciais é um projeto com tema relevante, ambição evidente e boa base técnica, perfurado por escolhas narrativas que minam a densidade do discurso que pretende vender.
A Guerra Entre a Terra e o Mar (The War Between the Land and the Sea) – 1X01 e 2: Homo Aqua e Plastic Apocalypse — Reino Unido, 7 de dezembro de 2025
Criação: Russell T. Davies
Direção: Dylan Holmes Williams
Roteiro: Russell T. Davies
Elenco: Russell Tovey, Gugu Mbatha-Raw, Jemma Redgrave, Colin McFarlane, Rodo Gener, Cat Gannon, Francesca Corney, Ann Akinjirin, Hannah Donaldson, Henry Nott, Waleed Hammad, Mei Mac, Fia Hadeed, Catherine Garton, George Robinson, Jennifer Jones, Edward Wu, Lachele Carl, Stewart Alexander, Barbara Probst, Ruth Madeley, Vincent Franklin, Alexander Devrient, Adrian Lukis, Leo Anthony
Duração: 43 min.
