Obras focadas na solução de mistérios, sejam eles assassinatos, sequestros, chantagem o que for, costumam enveredar por tramas inverossímeis e usar protagonistas exóticos. Faz parte do jogo desde Arthur Conan Doyle, passando por Agatha Christie e Dashiell Hammett e chegando a autores atuais como Anthony Horowitz, Richard Osman e Lucy Foley. Claro que essas histórias variam tremendamente tanto em qualidade quanto na aproximação à realidade ou a um semblante de realidade pelo menos, mas o DNA é o mesmo. O mais recente filme de Simon Stone, responsável pelo interessante por sua premissa, mas perdido em sua execução A Escavação, adapta o livro homônimo da britânica Ruth Ware, que ganhou uma continuação recentemente, e que coloca uma jornalista investigativa de renome em um iate de luxo cercada de bilionários benevolentes em uma viagem de alguns dias para celebrar a inauguração de uma fundação beneficente em homenagem a uma ricaça moribunda, com leucemia.
Se o conceito geral de um mistério “de câmara” é sempre chamativo, por obrigar o roteirista a trabalhar com relativamente poucas opções, a coisa pode ficar ainda mais interessante quando o próprio mistério é objeto de um mistério. Explicando, a traumatizada repórter Laura “Lo” Blacklock (Keira Knightley) é convidada a cobrir a referida celebração e, como um pato fora d’água em termos de aclimatação social em meio a pessoas que já nasceram tomando mamadeira de caviar, ela acha que testemunhou uma mulher caindo – ou sendo jogada – na água na primeira noite no iate, mulher essa que estaria na cabine 10, ao lado da sua. Mas que mulher? Afinal, todos os convidados e toda a tripulação estão presentes e vivos na manhã seguinte e a tal cabine 10, conforme o capitão informa e Richard Bullmer (Guy Pearce), dono da embarcação, reitera, estava vazia em razão de o convidado que era para estar lá acabou desistindo de fazer a viagem.
Mas esse mistério sobre o mistério, que poderia ser trabalhado com sutileza e cozinhado por mais tempo, dura algo como cinco minutos, pois fica imediatamente evidente que alguém está mentindo, com todos os bilionários passando a achar que Lo ficou maluca, inclusive seu ex-namorado e fotógrafo (e “pobre” como ela só que mais entrosado com os endinheirados) Ben Morgan (David Ajala). E é aí que os problemas começam, pois não só os endinheirados todos tornam-se verdadeiras caricaturas de seres humanos, como Lo passa a bater cabeça – literal e metaforicamente – fazendo um trabalho investigativo que mais parece afeito a uma estagiária de jornalismo em seu primeiro dia de trabalho. E, quando fica claro o que aconteceu – algo que alguém mais acostumado com obras dessa ordem vai matar em pouquíssimo tempo pois tudo é completamente telegrafado – não é o que acontece a partir do que Lo acha que viu que enfraquece o longa, mas sim a própria premissa que não faz sentido algum. Afinal, se havia um segredo tão importante, sua presença no iate não só era desnecessária (porque sim, era desnecessária), como esse segredo ser colocado na cabine bem ao lado da jornalista é de uma bobagem tão inacreditável que a única coisa que me resta é esperar que o livro que deu base ao filme – que não li – não parta desse mesmo ponto, pelo menos sem detalhadamente justificar essa escolha idiota.
Knightley, normalmente uma boa atriz, não tem muito o que fazer aqui a não ser fazer cara de confusa e/ou exasperada e/ou de criança que está sofrendo bullying, com o espaço confinado do iate – por maior que ele seja, a direção de arte e a fotografia acertam em criar a sensação de claustrofobia necessária – literalmente não dando espaço para a atriz ser mais do que isso. Os demais atores do elenco, como Pearce e Hannah Waddingham, são como vilões de James Bond, com risadinhas sarcásticas uma hora e gargalhadas sinistras em outra, mesmo que, no final das contas, eles não necessariamente sejam “os vilões” propriamente ditos, ainda que, claro, o roteiro faça questão de dizer por pelo menos duas centenas de vezes que todo bilionário não só é bandido, como são pessoas que esfregam as mãos e passam a língua entre os lábios com olhares arregalados de pura psicopatia capitalista, como se tivessem acabado de fugir da ala psiquiátrica de segurança máxima de uma clínica.
No entanto, por mais que a história não se segure e que os personagens sejam recortes de cartolina, Simon Stone cria algo que consegue manter o ritmo e até mesmo um pouco de tensão até o final. Não é um completo desperdício de tempo se o espectador ajustar expectativas e esperar um longa de mistério a bordo de um navio que sirva como desculpa para comer uma pipoquinha no final do dia (de minha parte, entre esse filme e a adaptação de 2022 de Morte no Nilo, por Kenneth Branagh, só para ficar em “mistérios em barcos”, fico facilmente com Cabine 10). Afinal, sendo bem sincero, A Mulher na Cabine 10 não é nada assim tão diferente de outras obras do gênero que existem por aí aos borbotões por autores bem mais renomados. Está tudo lá: o mistério inverossímil e tão cheio de partes móveis que chega a ser engraçado e uma “investigadora” diferente, mesmo que o diferente, aqui, não seja exatamente sinônimo de bom. Pelo menos a solução do mistério não é tirada completamente da cartola do autor ou roteirista como não é raro acontecer…
A Mulher na Cabine 10 (The Woman in Cabin 10 – EUA, 10 de outubro de 2025)
Direção: Simon Stone
Roteiro: Joe Shrapnel, Anna Waterhouse, Simon Stone (a partir de adaptação de Emma Frost do romance de Ruth Ware)
Elenco: Keira Knightley, Guy Pearce, David Ajala, Art Malik, Gugu Mbatha-Raw, Hannah Waddingham, David Morrissey, Kaya Scodelario, Daniel Ings, Gitte Witt, Christopher Rygh, Pippa Bennett-Warner, John Macmillan, Paul Kaye, Amanda Collin, Lisa Loven Kongsli
Duração: 95 min.