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Crítica | Angústia, de Graciliano Ramos

por Anthonio Delbon
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Há spoilers.

“Em que ponto do trajeto me acho? Não tenho consciência dos movimentos, sinto-me leve. Ignoro quanto tempo fico assim. Provavelmente um segundo, mas um segundo que parece eternidade. Está claro que todo o desarranjo é interior. Por fora devo ser um cidadão como os outros, um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da Silva qualquer.”

Tema caro a inúmeros gênios da literatura e da filosofia, a angústia já foi retratada de tantas maneiras que recoloca-la em pauta, ainda mais em tempos onde fofas histórias de amor adolescente, pílulas de pseudo carpe diem e intensas auto ajudas viraram o mote sábio da civilização, virou tarefa ingrata. Desculpem-me a amargura. Talvez ela seja necessária para mover uma discussão sobre a presente obra clássica de Graciliano Ramos, visceral no tédio e no desejo que se propõe a abordar na vida de “sururu” do protagonista deste sufocante romance.

E que vida de “sururu” é essa? É a vida de Luís da Silva, 35 anos, funcionário público. Nas palavras do narrador em primeira pessoa empregado pelo autor: “Esta vida monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de sururu. Estúpida.”.  O traço inicial de revolta continuará pontuando um dos livros mais densos e introspectivos de Graciliano, distinto da linguagem extremamente seca – ainda que haja secura na presente obra – e cortante de Vidas Secas, graças aos longos monólogos internos, às descrições psicológicas e aos tons paranoicos utilizados aqui, ocorridos principalmente, há de se ressaltar, quando duas figuras centrais na vida de Luis são objeto de seu pensamento: sua insípida vizinha Marina, por quem é perdidamente apaixonado, e Julião Tavares, odioso obstáculo em sua vida profissional e pessoal. Com o triângulo amoroso formado, ora há narrações sobre a paixão e o ciúme que a primeira provoca, ora há crítica intelectual e comportamental da qual o segundo é alvo, ainda mais quando este rouba Marina de Luís, ostentando seus dotes.

Uma das riquezas de Angústia reside nos expressivos recursos utilizados para demonstrar o estado de ânimo desse protagonista que soa como um permanente espectador revoltado em face dos sentimentos que carrega. Melhor dizendo, em face da própria vida, que apenas em situação extrema sofre drásticas mudanças. Com sobriedade suficiente para fazer fluir pensamentos que constantemente misturam épocas, influências pessoais e desejos do personagem, o escritor equilibra o pêndulo schopenhauriano entre desejo e tédio de forma magistral, retomando instrumentos como a animalização do homem, seja em comparações com ratos ou seja com porcos, traçando uma figura palpável e densa em seu cotidiano banal e sem graça. O fluxo de consciência das últimas páginas vem com um peso imenso trazido destes retratos dos longos dias de Luís, dando vida ao título da obra com um senso de realidade louvável.

A inevitável comparação com Dostoiévski e seu Crime e Castigo é importante como ponto de partida para notar o que Graciliano faz. Se o crime e o niilismo são os motores da história do russo, aqui, são o ponto de chegada. Nada difícil de perceber, ainda que isso traga implicações interessantes para outros tipos de comparação. Vejamos este trecho retirado do final da obra:

“A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. (…). Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros.”

Um prato cheio para existencialistas na busca pela já famigerada existência autônoma. A revolta advinda desse absurdo que havia se tornado sua vida seria caro a outro personagem clássico da literatura da angústia, Meursault, de O Estrangeiro, a ser publicado por Albert Camus apenas seis anos depois de Angústia. Até o assassinato de Julião, a extrema claudicância de Luís revela um personagem reticente, tímido a ponto de desejar que seu rival fugisse para evitar o tormento que viria a se tornar realidade. Mas nada evitou o homicídio planejado e consciente, coisa não sofrida pelo árabe da praia de Camus. Há aqui uma confusão de ideais éticos que impede a revolta que o autor francês tanto pregava como saída da angústia existencial. Luís critica a opinião pública de um ponto de vista privilegiado profissionalmente, descartando-a como produto de uma safadeza dos mesmos jornais nos quais contribui escrevendo, ainda que se preocupe com a mesma imediatamente após as consequências do seu ato final rodarem em sua mente, rendendo descrições de seu estado paranoico que beiram a comicidade de tão trágico.

Mas troque “jornal” por “escola” e “trinta e cinco anos” por “cinquenta anos”. Chegamos a outro fascinante personagem do que se estabelece, em termos gerais, como um dos parâmetros culturais ocidentais: Walter White. Os puristas literatos hão de perdoar tal comparação. Retirados contextos sociais e outros adornos, o problema é o mesmo nas duas obras, “Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos. ”. O anúncio da morte é o início da transformação do químico, mas o que o move em diversos momentos é o ressentimento de seus ex-colegas que ficaram ricos enquanto mal há recursos para pagar o tratamento necessário de seu câncer no pulmão. Similarmente, é ver a passividade de todos em face da injustiça cometida por alguém medíocre que enerva Luís, um homem muito melhor, em sua concepção, do que o gordo e falante Julião. Com o perigo que uma vida sem sabor traz escancarada em seu rosto, o protagonista decide agir. A necessidade de justiça e de voltar a um si mesmo já perdido – há muito – movem os dois personagens em direções semelhantes. É pelo enforcamento que o primeiro assassinato cometido por ambos acontece, curiosamente. Ainda que em circunstâncias diferentes, o choro de White é a vontade de avisar Julião do perigo que Luís carregou nos passos finais antes de se tornar um homicida. Mas ambos seguem em frente com o intuito de tirar o último suspiro de seus inimigos. Eles próprios precisavam respirar fundo e se erguerem renovados.

Até qual ponto tal renovação ocorre é, evidentemente, mais lentamente trabalhada na série de televisão do que nas derradeiras últimas páginas de Angústia, pela própria natureza da mídia utilizada. Antes do fatídico acontecimento, o autor dá indícios fortes de um Luís idealista, sonhador e muito mais ético do que estético. É por esse apego à razão, tão sutilmente pontuado, que o personagem sofre tanto com seus acessos de safadeza durante a obra, seja pensando na volta de Marina, ou na datilógrafa em um dia ordinário. Sempre, porém, imaginando de imediato um futuro feliz com elas e com tantas outras, como um tímido romântico agarrado ao mundo burocratizado que tanto odeia, para não cair em seus próprios demônios.

“Tenho-me esforçado por tornar-me criança – e em consequência misturo coisas atuais a coisas antigas”

Nostálgico, ressentido, esperançoso e medroso. Uma amostra geral desta tão complexa figura, em sua transformação calmamente construída, ainda fica incompleta sem a saída proposta por Graciliano ao final do livro. Essa renovação de espírito, tão aspirada para evitar a asfixia existencial, chega, evidentemente, com sabor agridoce: “Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado para não molestar as outras 16.384”. Mero observador, o protagonista volta à monotonia que o alicerça, tomando partido como defensor desta. Jogado de volta ao mar de gente, nota a falta de sentido de tudo ao redor, a insignificância ontológica do homem que se faz presente na mediocridade das relações diárias.

Luís permanece sofrendo da angústia ou a abraça com seu aceite? A escrita anti-tendenciosa tão meticulosamente empregada gera, na interpretação deste que vos fala, um final aberto, nesse sentido específico. Não vejo um personagem revoltado, muito menos agraciado. Angústia parece narrar um ciclo. Ler a primeira página após a última soa como uma continuação plausível da jornada sombria, ainda que um primeiro passo determinante para uma espécie de niilismo tenha sido dado. O melhor exemplo é a própria ausência da figura de Marina após a morte de Julião, em toda a imparável reflexão aloucada de Luís. Pouco ela passou a importar.

Vertigem da liberdade para uns, sinal de distanciamento de si mesmo para outros, o sentimento que dá título ao livro tem aqui um tratamento digno de seu poder, fielmente descrito com a maior imparcialidade possível ao mesmo tempo que com acidez, típica de um grande escritor como foi Graciliano Ramos. Situada entre duas outras magníficas obras, São Bernardo (1934) e Vidas Secas (1938), Angústia, publicado enquanto seu autor estava preso, é um relato das inescapáveis amargura e miséria, aqui individualizadas e asfixiantes.

“Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali (…) Quanto mais me vejo rodeado, mais me isolo e me entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramente percebo qualquer coisa que se relacione comigo.”

Angústia – Brasil, 1936
Autor: Graciliano Ramos
Editora: José Olympio
Edição utilizada:
RAMOS, Graciliano, Angústia, 52ª edição. Rio- São Paulo: Record, 2000.
268 páginas

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