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Crítica | Apocalypse Now Redux (2001)

Os soldados perdidos.

por Ritter Fan
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  • spoilers.

Depois de uma produção caótica abordada em um fenomenal documentário lançado em 1991, Apocalypse Now chegou às telonas em 1979 e fechou uma década de 70 imaculada para Francis Ford Coppola em termos de qualidade cinematográfica, um feito que ele mesmo jamais chegaria perto de repetir e que poucos cineastas conseguiram. Mas, como é comum acontecer e como o próprio Coppola não se furta em fazer com sua filmografia, o diretor retornou à sua obra no começo do século XXI para criar uma versão estendida, algo que reputo perfeitamente justificado não só porque ele manteve o original disponível – diferente de um certo cineasta que inclusive era para ter dirigido Apocalypse Now originalmente -, como é notório que ele precisou deixar muita coisa no chão da sala de edição para viabilizar seu projeto durante os dois anos que levou na pós-produção. O resultado é Apocalypse Now Redux, versão 49 minutos mais longa do que a original com créditos que é em essência o mesmo filme – seria um crime mudar uma obra desse naipe a ponto de descaracterizá-la -, mas com mais elementos para sublinhar com vigor o que de fato a obra é além de um libelo antibélico, ou seja, uma assustadora jornada simbólica da civilização à barbárie, algo discutido com acuidade por nosso crítico Marcelo Sobrinho em sua crítica do longa de 1979 que eu subscrevo, salientando, muito claramente, que os presentes comentários estão adstritos à versão Redux.

O trabalho de retornar ao material original não foi apenas um capricho de Coppola feito para “ganhar uns trocados”, como foi o caso da reunião de O Poderoso Chefão e O Poderoso Chefão – Parte II em uma minissérie para a NBC (o dinheiro que Coppola embolsou com esse projeto, diz a lenda, foi justamente injetado na produção de Apocalypse Now), mas sim uma tarefa empreendida com extremo cuidado e detalhismo e que contou com o retorno do montador e diretor Walter Murch e do diretor de fotografia Vittorio Storaro, que trabalharam na versão do cinema, de maneira que os três veteranos pudessem, ao máximo possível, criar uma espécie de nova bíblia do filme, mantendo passo, gradação de cores e outros aspectos que mantém a unicidade visual e narrativa, com Storaro usando uma processo especial da Technicolor, além de vários negativos, para chegar à versão ideal. Além de Murch e Storaro voltando, Coppola contratou o compositor Ed Goldfarb para especificamente criar novas faixas e extensões de faixas existentes para cenas cortadas e, portanto, não musicadas por seu pai Carmine Coppola, que falecera em 1991, com a instrução básica e essencial de manter a sonoridade e o compasso musical anterior, algo que ele fez muito bem sob instruções diretas e estritas do diretor. E, como se isso não bastasse, parte do elenco principal foi trazido de volta, mais especificamente Martin Sheen (Willard), Robert Duvall (Kilgore), Sam Bottoms (Lance), Albert Hall (Chief), Frederic Forrest (Chef) e Aurore Clément (que vive a francesa Roxanne Sarrault, cujas cenas em que aparece foram cortadas do original) para gravações de novos diálogos.

Redux é, portanto, para todos os efeitos, uma daquelas versões estendidas que muito facilmente poderia ser o filme original em termos da qualidade técnica do que foi feito para se manter a identidade da obra clássica. Isso não quer dizer, porém, que ela necessariamente replique a qualidade narrativa do longa de 1979, já que as adições e mudanças podem ser vistas como distrações, como desvios narrativos ou até mesmo como sequências com vida estanque e apartada do restante. Pessoalmente, não coloco Redux no mesmo patamar da versão do cinema de Apocalypse Now, mas é, sem dúvida alguma, uma obra espetacular que tem como maior mérito enredar o espectador ainda mais na jornada ao inferno de Willard e deixar muito claro que o que Coppola fez não é um filme de guerra ou até mesmo somente um filme antibelicista, mas sim algo que toca a natureza a humana, que olha para nós e faz perguntas incômodas que normalmente fazemos de tudo para ignorar ou responder genericamente. Não que isso já não estivesse claro para quem fez o mínimo esforço de interpretar além do óbvio, mas, aqui, o caráter de jornada em um crescendo surrealista e alucinógeno ganha destaque e ganha destaque a tal ponto – e daí minhas reticências sobre o resultado final – que o aguardado encontro e conflito de Willard com o Coronel Walter Kurtz (Marlon Brando) perde um pouco de sua força.

Há, evidentemente, uma série de alterações das mais diferentes naturezas ao longo da nova versão, começando já aos 21 minutos com a sutil mudança da música diegética mais alegre que se escuta no rádio na versão do cinema para uma música dramática e tonalmente mais apropriada para o momento. Mas seria impossível abordar cada uma dessas modificações em uma crítica, pelo que tomarei a liberdade de me limitar às grandes inserções, notadamente (1) o desfecho da cena de ataque ao vilarejo vietcongue pela Cavalaria Aérea de Kilgore; (2) o reencontro de Willard e companhia com as Coelhinhas da Playboy; (3) a cena da plantation francesa de borracha e (4) as cenas adicionais de Kurtz. São elas, afinal, que realmente ditam o novo ritmo narrativo da obra e que, em grande parte, exigiram as demais pequenas mudanças que gravitaram ao redor, seja o leve encurtamento da cena do encontro de Willard e Chef com o tigre ou a sequência adicionada em que Chef fala sobre sua coleção de revistas Playboy e Clean (Laurence Fishburne) conta um caso relacionado com o assunto. O objetivo de Coppola ao reinserir essas cenas, como a que se passa na plantation ele tendo detestado o resultado original como ele mesmo diz e repete no documentário O Apocalipse de um Cineasta, foi a de oferecer uma experiência que conversa com os horrores que somos capazes especialmente quando o mundo imediatamente ao nosso redor tem ruídas suas regras civilizatórias e com a jornada lisérgica real que os soldados americanos viveram durante a guerra, algo que se manteve escondido da imprensa, vale lembrar, e da jornada semelhante do elenco e de muitos envolvidos na produção com a oferta fácil de drogas durante as filmagens nas Filipinas.

Sobre as cenas que destaquei acima, a que encerra a participação de Robert Duvall no filme diz respeito à frustração de Kilgore quando o bombardeio de napalm altera o vento e torna o surfe no vilarejo menos desejável, algo que é usado como desculpa por Willard e Lance para fugir daquela insanidade, com Willard, ao final, furtando a prancha de surfe do tenente-coronel, com essa sequência sendo acrescida de outra, à noite, em que Willard e os demais no barco escondem-se dos helicópteros de Kilgore, que está atrás de sua estimada prancha, nas plantas próximas à água do rio. Apesar de eu entender que a mais sensacionalmente insana e aterradora sequência do filme – que, vale dizer, talvez venha cedo demais -, ou seja, o ataque ao vilarejo ao som de Wagner, talvez merecesse um fim igualmente insano, como se a loucura de Kilgore tivesse infestado Willard e seu pequeno grupo, tenho para mim que as cenas que são resgatadas do chão da sala de edição e inseridas no longa são tonalmente alegres demais, com uma jocosidade estranha ao momento do longa e, devo admitir, ao longa como um todo. Esse “trote” de Willard em Kilgore, apesar de merecido e de certa forma funcionar como “lutar contra a insanidade com mais insanidade ainda” é um pouco fora do próprio personagem de Willad, sempre de cara amarrada, sempre pensativo e sempre tentando mergulhar nos pensamentos de Kurtz. Em outras palavras, de todas as cenas longas novas, essa é a que eu gosto menos e a única que eu acho que merecia ser completamente extraída do filme.

Por outro lado, a segunda cena das Coelhinhas da Playboy, que vem em seguida à surreal apresentação delas para um batalhão às margens do rio, é absolutamente aterradora, deprimente e revoltante, exatamente no tom do longa. Filmada enquanto o tufão Olga ainda passava pelas Filipinas e, portanto, debaixo de chuva e um céu completamente acinzentado, essa sequência mostra Willard e demais atracando no acampamento destruído e quase deserto de um batalhão do exército onde está também o helicóptero das Playmates, com o capitão negociando, para seus subordinados, duas horas com as coelhinhas que ali estão em troca de dois barris de combustível. Esse é o Willard que vemos na sequência de abertura de Apocalypse Now, um homem destruído pela guerra e, mais ainda, por seu vício em guerra que o impede de voltar ao seu país natal, um homem que oferece mulheres para mostrar-se semelhante a Kilgore que ele afirma ser uma pessoa boa por ele realmente se preocupar com seus soldados, uma correlação fundamentalmente problemática. O que se segue, então, são mulheres muito claramente anteriormente brutalizadas, drogadas e usadas ao bel prazer de homens perdidos na névoa da guerra que “servem” aos soldados sob o comando de Willard em uma sequência que arrepia os pelos do braço e da nuca como poucos filmes de horror conseguem fazer.

A sequência seguinte, a famosa, longa e caríssima cena da plantation francesa que Willard e companhia encontram logo depois da morte de Clean em um momento surreal em meio à névoa do rio que navegam, é, sem dúvida alguma, um luxo enlouquecido de Coppola que contratou atores franceses, construiu cenários completamente diferentes do restante do filme e encomendou um jantar francês cenográfico completo com caviar e Champagne, além de ter “cometido” dois nepotismos extras ali trazendo seus filhos Roman e Gian-Carlo Coppola para o elenco, somente para não deixar resquício algum no corte que foi originalmente para o cinema. Essa sequência, que foi retrabalhada e inserida em Redux, tem 24 minutos e ela representa talvez a maior quebra de ritmo dessa versão do filme, uma que muita gente virou e até hoje vira o nariz. Tenho para mim, porém, que a cena – talvez não com essa minutagem – tem justificativa para existir e ela combina perfeitamente com o filme e, também, com a obra base de Joseph Conrad, primeiro porque ela segue o caminho inexorável da viagem lisérgica e brutal que acompanhamos ao praticamente fazer o elenco retornar no tempo de maneira a observarmos um período anterior à guerra que serve de pano de fundo ao filme e, com isso, abordar o colonialismo francês na Indochina que está na base do conflito na região o que me leva ao segundo ponto, ou seja, Coppola aproxima seu filme da temática central de Coração das Trevas. É uma cena para ser aquela em que o espectador solta um “o que diabos está acontecendo?” e isso a torna fascinante em todos os seus sentidos, seja pelos detalhes dos cenários, pela teimosia dos franceses em afirmar que aquelas terras ainda são deles ou a fotografia que usa o sol para metaforicamente “cegar” Willard, ainda que ela leve realmente a um desvio que desacelera a narrativa (não que ela seja particularmente acelerada, claro) e que, talvez mais do que tudo o que veio antes, crie um efeito diluidor na chegada de Willard a seu destino.

E, com isso, chegamos à última grande alteração de Coppola, resgatando a enorme quantidade de cenas que ele filmou nas três semanas que ele teve com Marlon Brando em locação, depois de uma negociação complicada do contrato com o ator. O que o diretor faz é usar todas as cenas que ele provavelmente reputou como utilizáveis em Redux, com Brando falando diálogos que oferecem sentido e que não apenas acrescentam divagações existenciais de improviso do ator. Enquanto eu sou o primeiro a dizer que eu facilmente assistiria horas e horas só com o que foi gravado somente para ver Brando justamente fazendo seus famosos improvisos, também sou o primeiro a dizer que mais Kurtz não é, de forma alguma, uma boa ideia em Apocalypse Now, Redux ou não. Tenho para mim que a aura de mistério ao redor do personagem é muito importante para a narrativa, pois, de certa forma, ele é um ser das sombras, alguém que comanda um exército com uma pegada de messianismo, que converte quem se aproxima para matá-lo com a força de um olhar e tudo isso ele “transfere” para Willard cujas ações pós-assassinato são reverenciadas e imitadas por todas ali. Com as cenas extras acrescentadas nessa versão, Kurtz ganha exposição demais, tanto física, com Brando aparecendo à luz do dia, quanto didática, com um pouco mais de explicações do que uma criatura mítica como ele – e que está presente no filme todo mesmo ausente – precisaria.

No entanto, Apocalypse Now Redux ainda é Apocalypse Now.  Sua essência continua intacta, assim como sua força perante o espectador. Claro, é uma versão que por vezes se perde, mas que, mesmo quando se perde, oferece algo mais do que apenas cenas originalmente cortadas e inseridas de qualquer jeito. Francis Ford Coppola pode ter ido além do que deveria em sua jornada para reconstruir sua  visão original sobre o longa, mas seu caminho por esse rio das trevas da mente humana mantém intacta sua obsessão que consumiu três anos de sua vida e quase todos os seus bens na década de 70. Redux é uma experiência que merece ser encarada e enfrentada, como um desafio que seja, como uma forma de revisitar uma obra-prima com uma abordagem talvez ainda mais ensandecida e assustadora.

Apocalypse Now Redux (EUA, 2001)
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola, John Milius (baseado em obra de Joseph Conrad)
Elenco: Martin Sheen, Robert Duvall, Frederick Forrest, Albert Hall, Dennis Hopper, Harrison Ford, Marlon Brando, Sam Bottoms, Laurence Fishburne, Collen Camp, Christian Marquand, Aurore Clement, Roman Coppola, R. Lee Ermey, Francis Ford Coppola, Vittorio Storaro, Christian Marquand, Aurore Clément, Roman Coppola, Gian-Carlo Coppola, Michel Pitton, Franck Villard, David Olivier, Chrystel Le Pelletier, Robert Julian, Yvon Le Saux, Henri Sadardiel, Gilbert Renkens
Duração: 202 min.

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