A perda recente no mundo do audiovisual que mais me afetou pessoalmente foi a do grande e incomparável David Lynch, ocorrida em 15 de janeiro de 2025 e que me fez finalmente retornar a Twin Peaks, icônica e ousada série noventista que, até agora, só havia assistido uma vez, quando ela foi originalmente lançada por aqui, ainda na TV aberta, sem eu ter sequer conferido a minissérie de retorno, de 2017. Assistindo Aquilo Que Você Mata, produção multinacional da França, Polônia, Canadá e Turquia falada em turco, com elenco turco, locações turcas e direção e roteiro do iraniano-canadense Alireza Khatami em seu terceiro longa e que foi a escolha canadense para concorrer a uma vaga no Oscar de Filme Internacional, eu esperava tudo e qualquer coisa menos, talvez, ver ainda tão perto do falecimento de Lynch, uma obra que pode ser muito facilmente considerada como herdeira de seu inconfundível estilo. Não foi, claro, uma produção feita em homenagem a ele, por ela ter se iniciado bem antes, mas é inafastável e bem-vinda a forma como Khatami praticamente encarna Lynch na concepção e execução de seu filme.
Mas que fique claro logo de início: Khatami não imita Lynch. O filme é, legitimamente, um filme de seu criador e não algo que tenta aproximar-se artificialmente da filmografia do cineasta americano. Não existem, aqui, as bizarrices desconfortáveis de Lynch e nem sua visão estética bem característica, pois Khatami não tenta esconder suas raízes orientais e muito menos uma abordagem consideravelmente realista da sociedade paternalista turca. Aliás, a veia lynchiana só fica mais evidente quando, na metade da minutagem do longa, há uma reviravolta que é como se Khatami fizesse a troca de gêneros cinematográficos notabilizada por Alfred Hitchcock, em Psicose, mas aí sim inspirando-se em David Lynch de maneira que o que vemos não é algo chamativo ou verdadeiramente dramático, mas sim um twist tão sutil que inicialmente causa estranheza e, em seguida, espanto, mas sempre com a manutenção de uma ponta de dúvida sobre a natureza do que estamos vendo e também do que vimos até esse ponto.
Na história, Ali (Ekin Koç) é um professor universitário que só recebe más notícias. Sua matéria provavelmente será cancelada no semestre seguinte, deixando-o sem emprego, seus exames médicos retornam e ele descobre que é estéril, escondendo essa informação de sua esposa e sua mãe fragilizada morre ao cair em casa. Esse último evento o leva a lentamente desconfiar que seu próprio pai teve uma mão na morte de sua mãe e, arregimentando a ajuda de seu jardineiro Reza (Erkan Kolçak Köstendil), que ele conhece inadvertidamente na cabana de seu jardim seco em um vale próximo e que contrata de impulso, para um ato de vingança. Khatami constrói sua história lentamente – por vezes lentamente demais, sobretudo na primeira metade -, lidando com diversas dinâmicas centradas em Ali, seja a dele com sua esposa veterinária Hazar (Hazar Ergüçlü), com seu pai Hamit (Ercan Kesal) e com suas irmãs Nesrin e Melahat (respectivamente Selen Kurtaran e Aysen Sümercan), além de, claro, com Reza, calmamente fazendo com que a pressão de ser pai pese fortemente sobre os ombros do protagonista e com a morte de sua mãe levando ao momento pivotante que, porém, o diretor lida de forma natural, sem chamar atenção para o momento, o que causa desorientação para o espectador que precisa correr atrás mentalmente e montar seu quebra-cabeças.
Com uma fotografia cuidadosa de Bartosz Swiniarski que usa imagens desfocadas logo de início, além de reflexos e transparências para chamar atenção para a abordagem psicológica e também onírica de Khatami, com esse segundo aspecto ganhando mais relevo com um sonho estranho que Hazar conta para Ali e que retorna ao final do longa, o filme nunca foge do que podemos chamar de realismo, distanciando-se, também dessa forma, da filmografia de David Lynch. Khatami aterra sua narrativa em ambientações comuns tanto citadinas quanto rurais, beneficiando-se de belas paisagens montanhosas para construir uma história que discute paternidade, vingança, sociedade patriarcal, moralidade, e, talvez acima de tudo, identidade, algo que passa a se tornar mais relevante a partir da virada de meio de filme, mas que, em retrospecto, está presente desde o começo, inclusive quando Ali explica a morfologia da palavra “tradução” em sala de aula.
Tenho certeza de que David Lynch ficaria orgulhoso de Aqui Que Você Mata e minha tristeza pelo falecimento do cineasta certamente foi momentaneamente transformada em alegria por ver a prova de seu legado nas telonas poucos meses depois em uma produção rica e multinacional que mostra como o Cinema é uma arte que permite conversas densas entre artistas diferentes. E, mesmo que o espectador não consiga fazer essa ponte, vale afirmar que o longa de Alireza Khatami, independente de qualquer outro fato, é do tipo que ecoa em nossas mentes por muito tempo após os créditos e nos indaga sobre quem somos quando fazemos algumas das escolhas que fazemos.
Aquilo Que Você Mata (The Things You Kill – França/Polônia/Canadá/Turquia, 2025)
Direção: Alireza Khatami
Roteiro: Alireza Khatami
Elenco: Ekin Koç, Erkan Kolçak Köstendil, Hazar Ergüçlü, Ercan Kesal, Serhat Nalbantoglu, Selen Kurtaran, Aysen Sümercan
Duração: 113 min.