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Crítica | Psicose (1960)

por Ritter Fan
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  • spoilers. Leiam, aqui, todo o nosso material sobre o filme.

Alfred Hitchcock é, provavelmente, o diretor que mais consistentemente legou imagens memoráveis à Sétima Arte. Há a sequência do leite em Suspeita, da Estátua da Liberdade em Sabotador, praticamente os filmes inteiros, nos casos de Festim Diabólico e Janela Indiscreta, a direção arriscada pela Riviera Francesa em Ladrão de Casaca, a sequência do Victoria and Albert Hall de O Homem Que Sabia Demais (1956), a sequência do avião fumigador em Intriga Internacional, as sequências de vertigem em Um Corpo Que Cai e muito, muito mais. E isso sem contar com duplas inesquecíveis, como James Stewart e Grace Kelly (ou Cary Grant) e  Ingrid Bergman e Cary Grant.

Mas, provavelmente, é Psicose que se tornou, ao longo do tempo, sinônimo do “cinema de Hithcock” e o filme pelo qual ele é mais lembrado, seja você cinéfilo ou não. E, de fato, apesar de Psicose não ser sua melhor obra – na verdade, ela tem um defeito substancial que abordarei mais adiante – é inegável o quanto essa fita é marcante e inesquecível. Seja a assustadora sequência do chuveiro (que foi filmada ao longo de três dias, contém mais de 50 cortes e o sangue é de chocolate – leia mais sobre ela, aqui), a revelação do chocante segredo de Norman Bates, o design marcante e inconfundível da casa do psicopata (baseada na pintura The House by the Railroad, de Edward Hopper), a atuação inimitável de Anthony Perkins (que não tem nenhuma relação física com o personagem do romance de Robert Bloch que deu base ao filme), a trilha sonora arrebatadora de Bernard Herrmann (que originalmente não seria usada na cena do chuveiro) ou a fotografia aterradora de John L. Russell (que era para ser colorida, em princípio), tudo funciona como um bem afinada sinfonia em Psicose, ainda um dos melhores filmes de suspense já feitos e certamente o melhor do sub-gênero serial killer.

E Psicose quase não se tornou um filme. Era o final da década de 50, o famigerado Código de Produção estava ruindo e Hitchcock estava preso por uma obrigação contratual de fazer mais um filme para a Paramount. Sua secretária Peggy Robertson lera uma crítica positiva do recém-lançado Psicose, livro de Robert Bloch ficcionalizando a vida do assassino Ed Gain, e decidiu levá-lo ao seu chefe, que ficou encantado. A Paramount vetou a adaptação pelo seu conteúdo pesado e por considerá-lo “infilmável”. A produtora queria uma de suas opções mais “fáceis” como a de No Bail for the Judge e o diretor estava um tanto desacreditado depois do relativo fracasso financeiro de Um Corpo Que Cai (a produção anterior de Hitchcock para a Paramount). Mas Hitchcock não se acovardou e pagou para ver, sugerindo à produtora bancar o filme integralmente, sem ganhar salário, usando a equipe de produção de seu programa de TV Alfred Hitchcock Presents, com filmagens no Universal Studios. A Paramount teria que prometer apenas distribuir o filme. E assim parte da História do Cinema foi feita.

Com orçamento baixo – menos do que um milhão de dólares, valor irrisório mesmo para a época – e filmando em preto-e-branco unicamente como parte da economia orçamentária, Hitchcock conseguiu um feito de fazer inveja, tomando de assalto os espectadores da época que, em uma estratégia que copiou do lançamento de As Diabólicas, de Henri-Georges Clouzot, cinco anos antes, foram proibidos por Hitchcock de entrar nos cinemas depois de iniciada a projeção. Mantendo tudo em mais absoluto mistério – algo que, hoje, é irritantemente impossível pela mania das produtoras de revelar e dos fãs em saber tudo sobre o filme antes do lançamento – Psicose foi um sucesso absoluto, que terminou de destruir o Código de Produção e que, segundo muitos críticos e estudiosos, abriu o caminho, para o bem ou para o mal, para uma longa era de filmes mais gráficos e violentos, com conteúdo sexual, era essa que, devo dizer, parece não ter acabado ainda.

Em termos de narrativa, Psicose é, literalmente um divisor de águas, pois, na verdade, o espectador é brindado com não um, mas dois filmes bem diferentes. O primeiro deles tem como estrela Janet Leigh, vivendo a secretária Marion Crane. Nós a vemos, de sutiã, na cama com seu namorado em uma cena risqué para a época e que foi extremamente debatida pelos censores ainda apegados ao Código de Produção. Os dois não têm dinheiro para casar e Marion, então, de uma hora para outra, decide furtar 40 mil dólares de seu chefe e foge de Phoenix, no Arizona, dirigindo.

Hitchcock nos faz acompanhar a fuga de Marion em detalhes, aproximando-nos da personagem com uma câmera invasiva, rente a seu rosto, em médio plano e close-up. Nós nos tornamos cúmplices da moça e passamos a sofrer por ela, de certa forma simpatizando por seus atos. Sua saga continua quando ela é acordada por um policial depois de passar a noite dormindo no carro na beira da estrada. Em seguida, ela decide se livrar do carro e uma inquieta negociação de compra e venda acontece, novamente com o policial à espreita. Marion sente o mundo fechar à sua volta e nós sentimos junto com ela. A jornada continua e Marion, na chuva, se desvia da estrada e para em um motel – sim, o Bates Motel – para passar a noite, pois, além de cansada e de não enxergar nada com o temporal, ela tem dúvidas sobre o ato que cometeu e começa a repensar o furto. Ela é, então, atendida por um atencioso rapaz, Norman (Perkins), dono do motel, e que mora com sua mãe em um casa próxima, que a coloca no primeiro quarto, próximo ao lobby. Marion vai, então, tomar banho. Ela parece querer se limpar da sujeira que cometeu. Há um subtexto de arrependimento, da limpeza trazida pela água.

E é, nesse ponto, que Hitchcock puxa nosso tapete e apresenta o maior plot twist de todos os tempos, com uma senhora – presumivelmente a mãe ciumenta de Norman – assassinando Marion impiedosamente, a facadas, em uma daquelas sequências que, uma vez vista, jamais será esquecida, com a trilha sonora de Herrmann, carregada de cordas e muita, mas muita tensão (ao ponto dos créditos de Herrmann no filme serem logo anteriores aos de Hitchcock!), nos desesperando. A plateia da época deve ter ficado desnorteada pela surpresa e completamente confusa com um fato simples que pode ser resumido a uma pergunta: a protagonista morreu e agora?

Mas é então que Hitchcock começa seu segundo filme, sobre a investigação do desaparecimento de Marion por sua irmã Lila (Vera Miles) e seu namorado Sam Loomis (John Gavin). Só vimos Sam antes. Lila aparece somente nesse “segundo ato” e temos que novamente nos acostumar com um novo personagem. Mas, agora, Lila é apenas um instrumento para impulsionar a trama, pois Hitchcock começa a mostrar seu verdadeiro foco, seu verdadeiro protagonista: Norman Bates. Em uma atuação fascinante, que em momento algum exagera nos trejeitos, Perkins faz um dos grandes papéis da Sétima Arte, tão grande que ele, que já gozava de certa relevância artística, depois que fez Norman, jamais conseguiu desvencilhar-se dessa ligação com o psicopata assassino que mantinha a mãe empalhada em casa e tomava sua identidade, com direito à peruca e vestido, para cometer seus atos de insanidade. Seu trabalho é delicado, lentamente passando ao espectador seus profundos problemas potencialmente de cunho sexual, talvez proveniente de abusos, mas que nunca têm sua origem explicada ou abordada, apenas insinuada, com Perkins assombrando pela forma natural como transita entre um mero atendente de motel e um assassino cruel que acha que é uma senhora de idade.

Psicose seria o thriller de assassinato perfeito não fosse seu final. E não estou falando, aqui, da resolução da trama do assassinato de Marion. Isso acontece sem falhas, com um roteiro redondo, atuações brilhantes, direção precisa e trilha sonora assustadora. Falo, na verdade, dos três minutos finais em que Hitchcock não se furta em apresentar aos espectadores uma explicação detalhada, mas extremamente artificial e, em última análise, desnecessária, sobre a insanidade de Norman Bates. Ele está preso em uma cela, mas um psiquiatra forense entra na sala do delegado e, falando para Lila e Sam, explica tudo o que o espectador já sabe. Nada é deixado para dúvidas ou para discussões. Norman Bates é descortinado, desnudado em uma versão for dummies de toda a sensacional obra que veio imediatamente antes.

Considero esse final algum tipo de delírio de Hitchcock. Ou, talvez, extrema insegurança por ter investido seu dinheiro na produção que havia sido deixada de lado pela Paramount e que teve até sua distribuição sabotada. Mas o fato é que o final está lá, infelizmente, um exemplo de “amadorismo” em uma obra que, de outra forma, seria de se aplaudir de pé. Reconheço que talvez essa afirmação seja um exagero, mas reparem como toda a sequência destoa completamente do que veio antes. Há relativamente poucos diálogos no filme e toda a explicação que precisamos já foi precisamente mostrada por Hitchcock nas sequências que se passam dentro da “mansão mal-assombrada” de Bates. A repetição cansa e chama os espectadores de idiotas quase que literalmente.

Talvez a loucura que foi a produção de Psicose tenha afetado o Mestre do Suspense, mas reputo essa escolha muito mais ao risco inerente ao próprio filme e o perigo de a plateia ficar sem realmente compreender tudo o que se passou diante do ineditismo da coisa toda. No entanto, mesmo com esse problema, que reputo sério, Psicose continua sendo essencial. Continua sendo inesquecível. Continua sendo incrivelmente ousado. Continua sendo o símbolo máximo de uma carreira impressionante e que ainda viria a dar outros memoráveis frutos.

  • Crítica originalmente publicada em 16 de junho de 2015. Revisada para republicação em 04/07/2020, como parte da versão definitiva do Especial Alfred Hitchcock aqui no Plano Crítico.

Psicose (Psycho, EUA – 1960)
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Joseph Stefano (baseado em romance de Robert Bloch)
Elenco: Anthony Perkins, Janet Leigh, Vera Miles, John Gavin, Martin Balsam, John McIntire, Simon Oakland, Frank Albertson, Patricia Hitchcock
Duração: 109 min.

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