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Crítica | Assassinos por Natureza

por Ritter Fan
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Lançado em 1994, Assassinos por Natureza foi cercado de polêmica e acusações. Falavam que o filme, além de ser muito violento, glorificava as ações de Mickey e Mallory (vividos, respectivamente, por Woody Harrelson e Juliette Lewis), o casal de serial killers que protagoniza a fita. Oliver Stone teve que cortar quatro minutos de sua obra para evitar que ela recebesse a temida classificação etária NC-17, além de ter seu filme banido na Irlanda e o lançamento no Reino Unido atrasado em vista de investigações sobre crimes sendo cometidos nos EUA e na França com base nas ações do casal principal.

É a velha história: é muito fácil acusar a indústria do entretenimento, especialmente a de filmes e jogos eletrônicos, por todos os males da sociedade. Problemas inerentemente sociais e econômicos, além do acesso irrestrito a armas nunca são levados a sério o suficiente, pois são difíceis demais de tratar.

Assassinos por Natureza, de certa forma, fala exatamente sobre isso. A violência é glorificada no filme? Sim, com certeza. Mas essa glorificação acontece para deixar patente para nós, espectadores, o quanto o circo midiático que envolve assassinatos indizíveis em escolas americanas (por exemplo) é só isso mesmo, um circo. Suas causas nunca são tratadas e, muitas vezes, o culpado recebe tanta atenção que acaba sendo objeto de um culto que o segue. Vide os terríveis atos de Charles Manson e o circo jornalístico que isso criou, além dos infelizmente diversos e recentes atentados em escolas, cinemas e locais semelhantes.

Na história, Mickey e Mallory Knox saem pelo meio-oeste americano em três semanas de violência, matando 52 pessoas até serem capturados, enjaulados e encabeçarem uma rebelião na prisão. Durante esse tempo, Oliver Stone nos mostra mortes atrás de mortes, além de atos de violência como estupros e sangue, muito sangue. Além disso, claro, vemos um flashback em formato de sitcom (uma maneira bem pensada de se fazer a batida “história de origem”) em que aprendemos como os dois se conheceram e como Mallory era abusada por seu pai (Rodney Dangerfield, em perturbadora atuação).

Mas Stone também não deixa de nos mostrar a violência da polícia nessa caçada, representada pelo Detetive Jack Scagnetti (Tom Sizemore), ele mesmo uma espécie de estrela em seu meio, mas com um vasto e terrível “lado negro” que vamos aos poucos descobrindo. E, finalmente, a cereja no bolo, é a presença de Wayne Gale (Robert Downey Jr.) como um repórter sensacionalista com sotaque australiano que, claro, segue a vida do casal assassino por onde quer que eles passem e entabula uma entrevista ao vivo com Mickey na véspera do dia em que ele será transferido para um manicômio judiciário.

Com isso, temos as três visões mais importantes e cada uma doentia em sua própria maneira: os assassinos, o policial e o repórter. A quarta visão é a do público que literalmente torce por Mickey e Mallory, ao ponto de, em determinada entrevista, um rapaz dizer que, se fosse um serial killer, gostaria de ser como Mickey. Além disso, ouvimos berros e cartazes de “Matem-me Mickey e Mallory!” na saída do tribunal onde os dois são julgados. Exagero? Olhem nosso dia-a-dia e notem que não é nada exagerado…

Aliás, tanto não é exagerado que o tom do filme era outro em seu início de produção, mais para o lado de filme de ação. Acontece que, no meio do caminho, entraram em erupção os seguintes casos nos Estados Unidos: os alegados assassinatos de Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman pelo atleta/ator O.J. Simpson, o esfaqueamento da patinadora Nancy Kerrigan por Tonya Harding, o espancamento de Rodney King pela polícia e o cerco de 51 dias a uma propriedade em Waco em que uma seita estava reunida.

Todos os incidentes acima foram, como todos sabem, completa e incessantemente cobertos pela mídia da época que, de certa forma, muito provavelmente acabaram influenciando o público e até mesmo os julgamentos. Assim, Oliver Stone mudou o foco do filme para um drama em que os jornalistas tornariam sua dupla de assassinos uma sensação midiática, algo exatamente em linha com o que vinha ocorrendo nos EUA, o que acabou tornando a fita em uma fortíssima crítica especialmente à forma pela qual a mídia americana trata eventos dessa natureza, ainda que o mesmo raciocínio possa ser claramente aplicado à diversos outros países do mundo, incluindo o Brasil.

É importante lembrar que, originalmente, o roteiro de Assassinos por Natureza era assinado por Quentin Tarantino e, em sua forma original, o destaque já era mesmo na mídia, encarnada pelo personagem de Wayne Gale. No entanto, depois que Tarantino tentou dirigir o filme e não conseguiu financiamento, ele o vendeu por 10 mil dólares, tendo seu roteiro radicalmente alterado por David Veloz, Richard Rutowski e pelo próprio Stone, ao ponto que seu crédito acabou ficando restrito a “história de”.

Ainda que seja fácil identificar traços “tarantinescos” na fita, notadamente nos diálogos carregados de informação pop e bem representativos dos personagens, o filme é decididamente de Oliver Stone. O diretor imprimiu uma quantidade tão grande de informação visual em Assassinos por Natureza que é literalmente impossível capturar tudo assistindo-o apenas uma vez. Por outro lado, exatamente em vista dessa sobrecarga sensorial que ele impinge nos espectadores, a obra de Stone não é de fácil digestão, especialmente se você não gostar de violência explícita.

Stone experimenta com cortes rápidos, uso de animação, fotografia em preto-e-branco, simulação de filme antigo, saturação de cores, uso do vermelho, uso do verde, uso do azul, câmera lenta, aceleração de quadros, projeção de imagens em chroma key e ângulos holandeses. E isso tudo sem contar com o fato que Stone trabalhou com nada menos do que 18 formatos de filme e o trabalho de montagem resultou em uma obra que tem três vezes mais cortes do que a média!

Acontece que todo esse exercício estilístico – que acabam causando dor de cabeça – faz sentido na narrativa que ele apresenta. Como Oliver Stone mesmo diz, não adianta querer procurar significado em cada mínimo detalhe, mas, visto como um todo, as imagens de Assassinos por Natureza nos mostram o lado psicológico de Mickey e Mallory e também de Wayne Gale e Jack Scagnetti, além do diretor da prisão, Dwight McClusky (Tommy Lee Jones). Vemos a mente de cada um deles pelas lentes tresloucadas e frenéticas de Oliver Stone. E isso funciona muito bem, muito diferente do que o próprio Stone viria a tentar fazer novamente em Selvagens.

Vejam, por exemplo, o uso do preto-e-branco versus o colorido em diversas cenas. Em um primeiro momento, as escolhas do diretor parecem aleatórias. Mas olhem com calma novamente: as cenas coloridas mostram o que literalmente nós e todos os personagens estão vendo, ao passo que as cenas em preto-e-branco transmitem, apenas para nós, o que o personagem em foco está sentindo ou pensando. O multicolorido é o mundo alegre que vemos e o monocromático é o mundo sombrio no interior de todos nós. É um fantástico uso de um recurso muito simples. O mesmo vale para diversas outras técnicas cuja dissecação só caberia em uma tese sobre o filme.

A violência de Assassinos por Natureza e o furor de Oliver Stone em usar simultaneamente todas as técnicas do “Manual do Diretor” em um filme apenas acaba, de certa forma, depondo um pouco contra a própria obra, já que ela se torna de difícil consumo. No entanto, a mensagem que o filme nos passa é muito clara, até porque é repetida muitas vezes e, por isso, ele merece ser visto pelo menos uma vez por quem não se importar com muito sangue.

Assassinos por Natureza (Natural Born Killers, EUA – 1994)
Direção: Oliver Stone
Roteiro: David Veloz, Richard Rutowski, Oliver Stone (baseado em história de Quentin Tarantino)
Elenco: Woody Harrelson, Juliette Lewis, Robert Downey Jr., Rodney Dangerfield, Tom Sizemore, Everett Quinton, Jared Harris, Pruitt Taylor Vince, Edie McClurg, Tommy Lee Jones
Duração: 118 min.

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