No alto de seus 87 anos, o galês Anthony Hopkins, ganhador de múltiplas premiações por sua longa e rica carreira de ator de cinema, incluindo duas estatuetas do Oscar, uma delas em um dos mais inesquecíveis papeis da Sétima Arte, o serial killer canibal Hannibal Lecter, em O Silêncio dos Inocentes, oferece ao público sua autobiografia com o simpático e modesto – talvez falsamente, sei bem, mas não acho que seja – título Até Que Deu Tudo Certo ou We Did Ok, Kid, no original. São pouco mais de 300 páginas, bem menos do que diversas outras autobiografias de celebridades contemporâneas de Hopkins por aí, que conta, ainda, com diversas fotografias de várias fases de sua vida no miolo do livro e um epílogo com uma seleção de poemas de autorias variadas que ele aprecia e/ou que foram importantes para sua vida.
Destaco a quantidade relativamente pequena de páginas para uma carreira que, no audiovisual, começou em 1960, mas bem antes se contarmos com o teatro, pois é algo incomum hoje em dia, em que a tendência é equalizar vidas bem vividas com o peso da autobiografia. Hopkins escreve o essencial, sem maiores firulas, abordando sua carreira de ator não exatamente como a atração principal, mas algo que compete por espaço com suas reminiscências de criança, adolescente e jovem adulto, sua relação próxima com seu pai e sua mãe – mas especialmente seu pai – e sua luta contra o alcoolismo, essa última mantendo uma presença constante até mesmo depois do momento em que finalmente alcançou a sobriedade. Não é o caso de outras autobiografias serem menos sinceras e mais floreadas, mas Hopkins é particularmente econômico e direto em seu texto que vem carregado de altas doses de sinceridade do tipo que legitimamente convence o leitor.
Privilegiado por uma memória incrível, Hopkins é meticuloso com locais, datas e tudo aquilo que gravita ao redor de momentos relevantes de sua vida, com sua carreira nas artes sendo objeto de um sem número de falsos começos, de momentos em que ele envereda por esse caminho, mas que suas próprias dúvidas, alimentadas por comentários negativos e cheios de dúvida vindos de seus familiares, professores e até mesmo diretores teatrais, acaba levando-o a esmorecer seu interesse, a usar a atuação não como carreira de futuro, mas como um emprego de momento. Seu pai é, muito claramente, uma presença poderosa em sua vida, mas nunca de maneira dramática como se pode esperar e sim como um exemplo a ser seguido e admirado, um homem sem cultura, mas que admira poesia e que, apesar de duvidar da capacidade do filho de se encontrar como ator, nunca realmente faz algo para tolhê-lo em sua escolha.
Até mesmo quando ele efetivamente encontra seu caminho, trabalhando como ator na prestigiosa Royal National Theatre, de Londres, sob a direção de ninguém menos do que o grande Laurence Olivier (que, vale dizer, cita Hopkins em sua autobiografia), Hopkins deixa suas dúvidas e raiva explosiva eminentemente causada pela bebida levarem a melhor, demitindo-se da companhia e deixando todos a ver navios, uma gigantesca descortesia que afetaria sua vida no teatro. Quando ele se encontra no audiovisual – primeiro na televisão e, depois, no cinema – o ator deixa muito claro ao longo de suas memórias que seu trabalho jamais realmente foi carregado de técnica, mas sim muito mais encarado caso a caso e com a clara compreensão de muito dessa sua escolha vem por achar a carreira em filmes menos exigente do que a do teatro, trazendo um componente interessante e muito raro de se ver em confissões (seja por celebridades, seja por nós mesmos), de uma certa acomodação ao que é “mais fácil” já cedo em vida.
Mas ele não desmerece a carreira de ator cinematográfico. Ao contrário, ele é só elogios para seus colegas de profissão e para o trabalho dos diretores com quem trabalhou e ainda trabalha. Ele apenas põe na balança o Cinema e o Teatro e, para ele, o primeiro acaba pesando mais não por ser intrinsecamente mais valioso ou melhor, mas sim por não exigir a dedicação de todos os dias da semana repetindo os mesmos diálogos para uma plateia comparativamente pequena. E qualquer leigo pode compreender o que Hopkins escreve nesse aspecto, pois é fácil imaginar o quanto deve ser desgastante passar pelo menos cinco horas (entre maquiagem, figurino e o tempo da peça) por todos os dias ao longo de meses, por vezes anos, fazendo exatamente a mesma coisa, sem espaço para erros, isso sem contar com ensaios e outros compromissos, em comparação com a fotografia principal em média de poucas semanas de um filme que, vale lembrar, costuma envolver cachês muito mais altos.
No entanto, Até Que Deu Tudo Certo é bem mais do que apenas um anedotários com curiosidades sobre a vida de Anthony Hopkins por ele mesmo. Seu texto carrega profundos arrependimentos, especialmente o de ter abandonado sua primeira esposa Petronella Barker e sua única filha Abigail em um momento em que a bebida o levava a pensamentos e, principalmente, comportamentos perigosos, mas também momentos de profunda compreensão sobre quem ele é e o que ele tem a oferecer, seja como ator, seja como marido de Stella Arroyave, com quem casou em 2003 ou como mentor de jovens aspirantes a atores. É, como toda autobiografia deveria ser, mas poucas realmente são, uma expedição de autoconhecimento e autodescoberta que leva a uma apreciação da vida vivida, com todos os seus aspectos negativos e positivos, já que a verdadeira vida é um mosaico, uma composição multifacetada composta de uma miríade de acontecimentos e decisões que tanto fecham quanto abrem novos caminhos. Anthony Hopkins, um dos grandes atores vivos, escreve para condensar e dar sentido aos seus quase 90 anos e para deixar que seus apreciadores extraiam lições do que ele viveu.
Obs: Irresistivelmente, depois de ler o livro, escutei a versão em áudio narrada por ninguém menos do que Kenneth Branagh (que consegue imitar as vozes de celebridades citadas magistralmente bem, com todos os poemas do epílogo sendo declamados pelo próprio Anthony Hopkins. Belíssima experiência!
Até Que Deu Tudo Certo: Memórias (We Did Ok, Kid: A Memoir – 2025)
Autoria: Anthony Hopkins
Editora original: Simon & Schuster
Data original de publicação: 04 de novembro de 2025
Editora no Brasil: Editora Sextante
Data de publicação no Brasil: 04 de novembro de 2025
Tradução: 304
