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Crítica | O Silêncio dos Inocentes

por Leonardo Campos
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Uma narrativa cinematográfica que mudou os rumos do suspense e se estabeleceu como um dos clássicos modernos mais envolventes e intrigantes da história recente do cinema. Assim é O Silêncio dos Inocentes, tradução intersemiótica do romance homônimo de Thomas Harris, dirigido por Jonathan Demme. Com roteiro assinado por Ted Tally, o filme conquistou as principais estatuetas da cobiçada premiação do Oscar em 1992 e se tornou uma referência em várias vertentes da produção cinematográfica contemporânea, desde a possibilidade de mesclar complexidade narrativa e entretenimento, ao desempenho dramático de todo o elenco, composição operística da trilha sonora, direção de fotografia e design de produção detalhistas e assertivos, dentre outros traços que o tornaram um dos melhores filmes de todos os tempos. Além de tudo isso, a narrativa nos apresentou o psicopata mais sedutor da história do cinema, figura perigosa, capaz de “matar” alguém apenas com as suas palavras silabadas, voz profunda e ritmada, olhos que quase não piscam, partes que integram esta criatura erudita, audaciosa, mas que na verdade é um monstro, uma espécie de ogro contemporâneo. Sim, falamos de Hannibal Lecter.

Ao longo dos 115 minutos de O Silêncio dos Inocentes, somos informados que um psicopata é o responsável por aterrorizar a região onde a narrativa se desenvolve, tendo como modo de operação, atacar mulheres com um determinado perfil, isto é, vítimas robustas e brancas, encontradas em situações lastimáveis de violência. O responsável pela onda de horror é Buffalo Bill (Ted Levine), um perturbado homem que deseja customizar uma roupa feita de pele das suas vítimas, aos moldes de Ed Gein, conhecido por ter sido o Monstro de Plainfield. A polícia, ao investigar, vai contar com a astúcia da determinada Clarice Starling (Jodie Foster), personagem que não precisa enfrentar apenas o machismo oriundo dos policiais que a circunda, o risco da situação diante do psicopata, mas também terá de lidar com os agonizantes desafios psicológicos, propostos por um importante colaborador da sua “situação problema”: o mencionado Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), canibal enclausurado numa prisão de segurança máxima, figura chave para a resolução do caso, colaboração que chegará com alto custo para todos os envolvidos.

Ele sabe que Clarice Starling é supervisionada por Jack Crawford (Scott Gleen), um de seus desafetos, situação que torna o contato inicial desrespeitoso, mas aos poucos, permite que Lecter crie alguma afinidade com a jovem estagiária do FBI. Após o sequestro da filha de uma senadora, o caso ganha maiores proporções, o que faz a corrida pela caçada a Buffalo Bill se tornar mais intensa. Lecter lança a sua oferta: uma nova cela, com janelas e num local mais sofisticado, além da permissão de Clarice para o famoso “toma lá, da cá”, espécie de transformação da colaboração na investigação em sessão terapêutica para a moça. Neste processo, a cada informação cedida pela jovem agente, o psiquiatra canibal assimila mais dados sobre a personagem, permitindo que nós também criemos a identificação necessária para o envolvimento com o desfecho apoteótico da história evolutiva de uma mulher traumatizada pela morte trágica do pai, pelos cordeiros que eram ceifados na fazenda próxima para onde foi encaminhada quando ficou órfã. Ao tentar salvar um dos animais em determinada situação, acabou sendo enviada para uma instituição luterana onde permaneceu até torna-se adulta e obstinada a seguir a carreira em investigação criminal.

Com a sua retórica deliciosamente ministrada, tanto nos momentos de tensão quanto nos diálogos mais simples, o canibal, mesmo dono de uma personalidade assustadora, dificilmente consegue repelir o público, pelo contrário, a cada aparição faz os nossos olhos brilharem de encantamento. É o que nos leva aos estudos sobre a presença do psicopata como herói da pós-modernidade, figuras que representam tudo aquilo que nós devemos repelir em nossos códigos civilizatórios. Astuto e inteligente, o Hannibal Lecter de Anthony Hopkins comete crimes enquanto as Variações Goldberg, de Bach, tomam o ambiente como condução musical de seus atos espúrios. Amante da literatura e da filosofia clássica, ele não se apresenta como um assassino vulgar qualquer, o que torna um breve momento de diálogo uma aula de análise do comportamento humano. Enquanto ele ceifa os algozes, pune os maléficos, o seu discípulo passional, Buffalo Bill, também tratado como James Gumb, aniquila mulheres inocentes, cobiça coisas que não lhe pertencem, extraídas de vítimas que tais como os cordeiros que nomeiam a história, são vítimas sacrificiais.

Ted Tally, no desenvolvimento do texto, conseguiu mapear os principais aspectos do romance de Thomas Harris e transforma-los sabiamente em material cinematográfico. Ao longo de seis anos de dedicação ao livro, o escritor construiu os seus personagens com cautela e complexidade, apuro que na versão cinematográfica também foi respeitado. Clarice é uma mulher com o passado traumático, Lecter é um ogro contemporâneo, uma besta que resgata tudo aquilo que é grotesco na história evolutiva da humanidade, uma espécie de Mefistófeles, de Goethe, sábio, corrosivo, audacioso e ciente de suas habilidades manipuladoras. Buffalo Bill é, tal como já mencionado, uma versão de Ed Gein, psicopata que também influenciou a criação de Norman Bates e Leatherface, de Psicose e O Massacre da Serra Elétrica, respectivamente. Na composição do personagem, temos também alguns traços de Ted Bundy e Heidnick Gary, o primeiro pelo fato de se fingir de ferido para atrair as vítimas e golpeá-las covardemente para levar ao caminho da morte e o segundo por manter um poço no porão da casa, espaço onde mantinha as suas vítimas. Num olhar mais geral, o psicopata também traz elementos de Gary Ridgway, o assassino de Green River. Após os seus atos criminosos, despejava os cadáveres neste rio ou em áreas arborizadas próximas.

Em sua estrutura com paralelismos, o filme traz dois mentores digladiando com distanciamento, isto é, Lecter e Crawford, referências para Bill e Starling, também um contra o outro, nesta narrativa primorosa por ser milimetricamente calculada em seu desenvolvimento dramático e estético. O design de produção de Kristi Zea, por exemplo, é um setor que se manteve com base em muitos estudos sobre os perfis dos assassinos que inspiraram a criação da história. Francis Bacon, o polêmico pintor da carne humana, figura controversa das artes visuais no século XX, serviu de referência para algumas passagens, em especial, a cena do ataque de Hannibal Lecter aos policiais, passagem próxima aos momentos decisivos desta narrativa com condução musical orquestrada por Howard Shore, compositor da textura percussiva firme, envolvente, melancólica em alguns trechos e aterrorizante em outros, melhor paisagem sonora da franquia baseada no universo literário criado por Thomas Harris. Os figurinos assinados por Colleen Atwood também são assertivos, ao apresentar Clarice com roupas e maquiagem sem brilhos e excessos, transmitindo visualmente a personalidade discreta, serena e solitária da investigadora.

Coeso e coerente em sua montagem, assumida pelo editor Craig McKay, O Silêncio dos Inocentes triunfa esteticamente, com grande destaque para a sua direção de fotografia, assinada por Tak Fujimoto, profissional que junto ao cineasta Jonathan Demme, concebe imagens com presença constante de close-up, tendo em vista aproximar Hannibal Lecter do público e causar a sensação de medo e desconforto. Outra estratégia do setor foi o estabelecimento do ponto de vista para que pudéssemos acompanhar em cena o que fosse mais próximo do olhar da heroína Starling. Muitas passagens emulam o olhar da personagem e nos permite compreender a história sob o seu ponto de vista. Quando no desfecho, em seu enfrentamento com Buffalo Bill, ela é mergulhada na escuridão da armadilha do antagonista, adentramos na mesma zona de desconforto da personagem, angustiada por não saber se conseguirá sair viva da jornada de horror estabelecida pelo psicopata acuado. Ainda sobre estética e elementos visuais, importante notar a presença do gato como elemento simbólico constante, além da mariposa da morte, inserida na garganta de suas vítimas como uma marca do assassino.

O inseto representa o seu desejo de transformação, levado para uma realidade assustadora quando ele começa a cometer os assassinatos e esfolar as suas vítimas para a confecção da roupa de pele humana, parte de seu projeto assombroso, oriundo da mente perturbada de alguém que teve a cirurgia de transição negada pelos médicos responsáveis por seu caso clínico. Ademais, por ser professor de Literatura e Cinema e Vídeo, sempre coloco a produção como parte integrante da formação dos interessados em aprender sobre cinema, seja pela composição dos quadros, design de produção, lições sobre direção de fotografia, montagem eficiente ou na criação de elementos dramáticos para roteiro que adaptar bem a base ponto de partida, importada da literatura. Assistir ao filme é como sentar diante de uma vigorosa e bem preparada aula de cinema. Jonathan Demme e sua equipe fizeram escola, estabeleceram um padrão seguido por diversas produções posteriores, numa remodelagem do suspense que inclui também referências para as séries televisivas sobre investigação criminal, tema exaustivo na atualidade, banalizados por realizações ficcionais que perderam a possibilidade de inovar diante do esgotamento temático.

O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, EUA – 1991)
Diretor: Jonathan Demme
Roteiro: Ted Sally (baseado no romance homônimo de Thomas Harris)
Elenco: Jodie Foster, Anthony Hopkins, Ted Levine, Scott Gleen, Anthony Heald, Kasi Lemmons, Frankie Faison, Lawrence A. Bonney.
Duração: 111 minutos

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