Existem filmes que não se preocupam em explicar a vida, mas em acompanhar seu ritmo. Boyhood: Da Infância à Juventude não precisa de grandes acontecimentos para prender o espectador, ele se apoia naquilo que todos vivemos: crescer, errar, amar, mudar. O diretor Richard Linklater não filmou uma história; ele registrou um tempo essencial da vida. Foram doze anos de gravações com os mesmos atores, construindo personagens que não apenas interpretam, mas de fato vivem. O protagonista, Mason (Ellar Coltrane, que sentimos como se fosse nosso filho), é moldado pela passagem das estações, pelas dúvidas que aparecem devagar e pelos encontros e desencontros que, com o tempo, se tornam parte de quem ele é.
A estrutura visual da obra respeita essa naturalidade. Linklater começou filmando com câmeras de 35mm e, a partir de 2009, passou a usar digital com a Arri Alexa Classic. Essa transição tecnológica poderia comprometer a unidade estética, mas os diretores de fotografia, Lee Daniel e Shane F. Kelly, optaram por um estilo low profile, com luz natural e enquadramentos suaves, que colocam o foco sempre nos personagens, nunca na técnica. A edição, feita ao longo dos anos por Sandra Adair, sustenta esse cuidado: ao invés de construir elipses óbvias, ela deixa que o tempo escorra entre cenas como na vida real. Os cortes são quase imperceptíveis, e o resultado é uma continuidade que faz parecer que estamos revendo lembranças, não assistindo a uma produção cinematográfica.
O núcleo da narrativa está nas relações familiares. Olivia, vivida por Patricia Arquette, é uma mulher que tenta oferecer estabilidade aos filhos enquanto enfrenta fracassos amorosos, mudanças de cidade e recomeços dolorosos. Já Ethan Hawke entrega um pai que parece querer acertar, mas só começa a encontrar seu lugar conforme os filhos crescem. O divórcio aqui não é apenas pano de fundo: ele é parte da formação emocional de Mason e Samantha. Em vários momentos, o filme mostra como a ausência de comunicação entre adultos gera insegurança nas crianças, mas também como essas mesmas crianças aprendem a se reinventar diante das ausências. A figura do padrasto, as brigas domésticas, os monólogos maternos sobre escolhas, tudo contribui para uma experiência que fala com quem já viveu o descompasso entre crescer e sobreviver.
Ao longo do filme, as incertezas ganham formas sutis. Na adolescência de Mason, elas aparecem como silêncios incômodos, conversas cortadas pela falta de vocabulário emocional e até na expressão corporal: ombros arqueados, olhos baixos, movimentos incertos, ações impetuosas, atos descuidados, busca por chamar a atenção. A câmera, sempre próxima, mas nunca invasiva, acompanha essas inquietações sem julgá-las. Há cenas onde a ausência de respostas é tão evidente quanto a presença de dúvidas, e isso dá ao espectador espaço para sentir junto, não para entender tudo, mas para reconhecer. Linklater não se preocupa em fechar arcos, e é justamente por isso que eles continuam reverberando depois dos créditos finais, pois se assemelha demais à vida real.
A cultura popular e a trilha sonora ajudam a situar cada fase da vida de Mason, mas também emociona por sua familiaridade. As principais faixas não são decoração superficial na obra, mas recebem utilização como criação de memória e relevo marcante de atmosfera em cada cena. Esse truque afetivo ajuda a reforçar o vínculo entre tela e espectador. Mais do que dar ritmo e corpo sentimental, essas escolhas ajudam a construir o tom tocante da narrativa, sem exageros nem sentimentalismo barato. O mesmo cuidado aparece no amplo desenho de produção: os espaços domésticos e móveis da direção de arte, os cartazes, os cortes de cabelo, a maquiagem e os figurinos mudam com os anos, mas nunca parecem que alguém “arrumou a cena”, ou seja, não é artificial, é orgânico.
Boyhood: Da Infância à Juventude é sobre um processo contínuo, aquele que vai se formando nas brechas entre uma conversa e outra, nos pedaços de tempo que ninguém vê. Não há lição clara, não há clímax explosivo. Mas há verdade. E nesse filme, isso basta. Linklater escolhe confiar no espectador como quem entrega um álbum de família a um estranho compreensível: cada um vai reconhecer o que quiser, lembrar o que puder, sentir o que der conta. Porque amadurecer não é um evento, é uma travessia. E esse filme é uma das mais belas que o cinema já registrou.
Boyhood: Da Infância à Juventude (Boyhood) — EUA, 2014
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater
Elenco: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke, Lorelei Linklater, Marco Perella, Brad Hawkins, Zoe Graham, Charlie Sexton, Nick Krause, Elijah Smith, Steven Chester Prince, Libby Villari, Sydney Orta, Shane Graham, Evie Thompson
Duração: 165 min.
