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Crítica | Come from Away: Bem-Vindos a Gander

por Ritter Fan
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Se tem um aspecto positivo nessa pandemia é a disponibilização ampla em streaming de material que, antes, ficava reservado exclusivamente a às vezes impossíveis participações presenciais, como é o caso de shows de música e, mais ainda, de peças teatrais. O badalado musical Hamilton, claro, é o maior expoente disso, ainda que longe de ser o único, pois há, por exemplo, o Frankenstein “duplo”, adaptado por Nick Dear, dirigido por Danny Boyle e estrelado, alternativamente, por Benedict Cumberbatch e Jonny Lee Miller, infelizmente pouco divulgado. E, agora, eis que Come from Away, musical canadense montado originalmente em 2013 e que foi vagarosamente ganhando os teatros americanos ao longo dos anos até chegar à Broadway, em 2017 e, do outro lado do Atlântico, ao West End, em 2019, chega ao streaming com distribuição do Apple TV+ que vem engordando seu catálogo de produções exclusivas a passos largos.

Como Come from Away: Bem-Vindos a Gander não tem nem uma minúscula fração do hype de Hamilton, cabe uma breve contextualização, especialmente para aqueles que, no fatídico 11 de setembro de 2001, ainda não tinham nascido ou eram jovens demais para pescar a magnitude dos atentados. Com o sequestro dos aviões utilizados como mísseis por terroristas islâmicos, o espaço aéreo dos EUA foi, pela primeira e até agora única vez na história, completamente fechado, o que criou uma operação multinacional sem precedentes para retornar voos ou desviá-los para aeroportos de países vizinhos. O Canadá, óbvia alternativa para os voos vindos tanto do Pacífico quanto do Atlântico, iniciou a chamada Operação Yellow Ribbon, abrindo seus aeroportos para acolher esses voos – e isolá-los – de forma a impedir que os aviões sobrevoassem espaço aéreo americano e fossem utilizados como outros mísseis (àquela altura, com os poucos dados disponíveis, todos os voos foram considerados potenciais armas).

Somente do Oceano Atlântico, havia pouco mais de 200 voos que já haviam passado do ponto de retorno e que precisavam pousar no continente americano, com 38 deles sendo desviados para o aeroporto da cidade de Gander, na ilha de Newfoundland, no Canadá, que é mais próxima da Groelândia do que dos EUA e que, há bastante tempo, era usado como ponto de reabastecimento de voos transatlânticos quando isso era necessário. O resultado foi o caos completo, já que a população da cidade e região ao redor era de algo como 11 mil habitantes que se viu adicionada de nada menos do que sete mil “turistas” das mais diferentes nacionalidades literalmente de uma hora para outra. Essa inusitada situação, antes e depois de se tornar um musical, foi objeto de uma minissérie de ficção em 2009, Diverted, e de um documentário de 2018, You Are Here.

O musical, quase que integralmente cantado com canções compostas por David Hein e Irene Sankoff, seria adaptado novamente, desta vez para o cinema, mas, com as dificuldades trazidas pela pandemia, a produção mudou de caminho e partiu para a estratégia do teatro filmado de Hamilton. Mas Hamilton não é parâmetro de comparação, na verdade, já que a produção, de duração razoavelmente curta para um musical da Broadway, é extremamente modesta, usando cenário único com oito músicos no fundo do palco e com o centro giratório, tendo como únicas alterações visuaisa adição e subtração de mesas e cadeiras, algo feito pelo próprio elenco com uma facilidade e naturalidade impressionante, de forma a representar um bar, uma escola e até um avião.

Também em termos audiovisuais, a produção é básica, ou seja, depende muito da câmera central focada no palco todo, com as “cabeças” da plateia aparecendo, mas com câmeras secundárias que dão conta de ângulos alternativos, close-ups, plongês e movimentos circulares que, na mesa de edição, foram costurados com muito cuidado para quebrar a impressão monolítica e que muitos acham incômoda – eu inclusive – do mero teatro filmado estático. Com isso, o elenco formado de apenas 12 atores que fazem múltiplos papeis, muitas vezes tanto passageiro quanto habitante de Gander – como é o caso da sensacional Jenn Colella, em destaque na imagem, que vive a engraçada Annette, da cidadezinha, e Beverley Bass, a primeira piloto da American Airlines – apenas com instantâneas e simples alterações de figurino no próprio palco.

A iluminação do palco é outro elemento que consegue sensacionalmente substituir as transições e fade outs normalmente usadas em outras produções cinematográficas do gênero, com um elegante jogo de luzes que consegue muito eficientemente, por si só, transformar o pano de fundo único em ambientes diferentes, com “código de cores” por assim dizer. Com isso, o olhar do espectador é espertamente desviado das discretas alterações acontecendo no palco (só a “dança das cadeiras, como disse), criando uma natural maneira de se mudar de cenas sem precisar de truque óticos de câmera ou montagem, o que garante o ritmo acelerado da produção que passa muito claramente ao espectador os sentimentos complexos desses poucos e importantes dias tão ao norte do mundo, com passageiros perdidos tentando entender o que está acontecendo e habitantes frenéticos, fazendo de tudo para oferecer consolo e algum conforto aos visitantes.

E é nessa lição de generosidade e bondade humanas que Come from Away se destaca e transcende o momento histórico em que a narrativa se passa. Afinal, estamos falando de uma história verdadeira, em local verdadeiro, com personagens verdadeiros – cada pessoa retratada no musical realmente existiu e suas histórias estão refletidas ali, ainda que, claro, com um natural e necessário grau de ficcionalização – que resultou em amizades e conexões que, 20 anos depois, mantêm-se firmes e fortes. Foram quatro ou cinco dias em que o horror transformou-se em generosidade, beleza, conforto e um grande exemplo de que, mesmo nas piores adversidades, nossa tendência é de ajudar os outros ou pelo menos é isso que tentamos ao máximo fazer. Claro, a situação não é exatamente limítrofe e desesperadora para os habitantes da ilha e para os passageiros que lá chegaram, mas o recorte é válido como uma mensagem positiva que emociona e alegra corações e pode ser transplantada para diversos outros cenários reais ou não.

Facilitando essa comunicação, as canções da dupla criativa original são bálsamos que conseguem ao mesmo tempo ser funcionais, por vezes quase faladas para desenvolver a trama, e melódicas o suficiente para serem apreciáveis fora do ambiente da peça, com especial destaque para Welcome to the Rock, que dá conta de abrir a narrativa e já estabelecer a premissa, Darkness and Trees que tem a função de refletir a confusão e ignorância dos passageiros, a triste I am Here, que lida com uma mãe que não tem notícias de seu filho bombeiro de Nova York, a alegre Screech In que aborda o hilário “ritual” da naturalização dos passageiros como newfoundlanders, a romântica Stop the World que faz a conexão entre dois passageiros e assim por diante. E é claro que nada disso funcionaria sem que o elenco original da Broadway tivesse uma performance enérgica, quase que constantemente com os 12 no palco, pulando de um personagem para o outro com apenas uma mudança de figurino ou às vezes nem isso.

Curiosamente, o ponto negativo da produção é seu tamanho. Vez ou outra eu reclamo quando filmes ultrapassam a duração que a história exigia, mas é muito raro – raríssimo – que o contrário aconteça, ou seja, que a obra seja curta demais para o que tem a oferecer e este é o caso de Come from Away. Não é nem de longe um problema sério – se alguma coisa, querer ver mais é um atestado de sua qualidade! -, mas por vezes a conexão entre personagens poderia ter se beneficiado de algumas extensões, algo que trouxesse ainda mais ressonância para os laços criados naqueles inesquecíveis poucos dias em uma ilha do Atlântico do Norte. Mas não se enganem, pois diversas “duplas” funcionam muito bem, mas nem todas funcionam uniformemente e meu ponto é que elas talvez devessem, com uma minutagem levemente maior, provavelmente mais próxima das duas horas.

No entanto, mesmo sendo econômica, a peça transmite exemplarmente sua mensagem de esperança em relação à Humanidade, esperança essa que, diante do que vemos acontecer ao nosso redor diariamente, podemos perder, ainda que momentaneamente. Come from Away transforma tragédia em generosidade, medo em tolerância, morte em lição de vida, resultando em uma experiência audiovisual que garante um sorriso de satisfação e, até mesmo, aquela lágrima furtiva.

Come from Away: Bem-Vindos a Gander (Come from Away, EUA/Canadá – 10 de setembro de 2021)
Direção: Christopher Ashley
Roteiro/livreto: David Hein, Irene Sankoff
Elenco: Petrina Bromley, Jenn Colella, De’Lon Grant, Joel Hatch, Tony LePage, Caesar Samayoa, Q. Smith, Astrid Van Wieren, Emily Walton, Jim Walton, Sharon Wheatley, Paul Whitty
Duração: 106 min.

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