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Crítica | Eddington

O caos como reflexo.

por Kevin Rick
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Ari Aster sempre tratou o horror como metáfora; a família desintegrando-se em Hereditário, o ritual de dor disfarçado de festa em Midsommar, o labirinto de ansiedade em Beau Tem Medo. Com Eddington, ele muda de palco, porém não de tom: ambientado em maio de 2020, durante a pandemia e a polarização americana, o filme desloca o terror para o ideológico e o social, transformando uma cidadezinha do Novo México numa arena onde o maior monstro é o coletivo. O diretor expande sua visão para o terreno do faroeste contemporâneo, um gênero que, sob suas mãos, se transforma em um mosaico político, social e psicológico do caos americano recente. O deserto aqui não é espaço de redenção, mas de ruína moral; o duelo não é entre cowboys, mas entre crenças. É o Ari Aster mais expansivo, mas também o mais difuso, em um filme que mira em todas as direções e, embora atinja vários alvos, raramente acerta o centro.

A trama se passa em uma pequena cidade do interior, onde o xerife Joe Cross (Joaquin Phoenix) se torna o epicentro de uma espiral de paranoia e desinformação que mistura pandemia, radicalismo político, negacionismo, conspirações e culto à personalidade. Há algo de profundamente contemporâneo na maneira como Aster constrói esse protagonista: Joe é o homem comum tragado pela ideologia e pela sensação de estar sendo deixado para trás. É o herói que o próprio faroeste americano criou, só que agora corrompido por ressentimento, por uma masculinidade ferida e por uma crença cega em “valores tradicionais” que se dissolveram no ar. Joaquin Phoenix alterna humor e desespero, fazendo de Joe uma figura ao mesmo tempo trágica e ridícula.

O filme se move como uma sucessão de ideias que se atropelam. Aster, aqui, parece mais interessado em capturar o espírito de um tempo do que contar uma história linear. E o resultado é, ao mesmo tempo, fascinante e frustrante. Eddington é um espelho rachado: há reflexos de tudo, entre sátira política, crítica social, humor ácido, suspense psicológico, comentário sobre a era digital, etc, mas nenhuma dessas imagens ganha nitidez completa. O diretor se diverte em espalhar subtramas, personagens, conspirações e símbolos, mas não amarra completamente nenhum deles. Isso não seria um problema se o caos soasse orgânico, mas há momentos em que o filme parece se perder dentro da própria ambição.

Ainda assim, há muito o que admirar aqui. O olhar do diretor sobre a juventude, por exemplo, é de uma ironia bem feita. Aster captura com precisão a histeria digital, a forma como causas políticas e sociais se misturam com a necessidade de performance. O grupo de jovens ativistas que orbita a trama, em suas hipocrisias, excessos e engajamento vazio, compõem algumas das melhores passagens e diálogos da obra (eu mesmo passei mal de rir em alguns discursos histéricos). Ele não zomba da militância em si, mas da forma como ela se tornou espetáculo, filtro e identidade de ocasião. 

Há, também, uma crítica sincera à influência da mídia e dos algoritmos, ao modo como discursos extremos e teorias malucas ganham forma e se transformam em fé. Um dos personagens, uma espécie de guru conspiracionista da internet, interpretado por Austin Butler, apesar de tremendamente subutilizado, é um exemplo do eixo invisível que conecta o desespero individual ao fanatismo coletivo. É aqui que o filme atinge seus momentos mais afiados, quando flerta com o absurdo político e digital.

Aster filma Eddington com o mesmo rigor estético que sempre o caracterizou. O enquadramento seco, o uso constante de planos abertos e o contraste entre luz natural e interiores saturados reforçam a sensação de desolação. Boa parte da decupagem aqui funciona como comentário visual sobre isolamento e delírio. Existe também uma certa melancolia que acompanha os momentos mais íntimos da narrativa, como as sequências de Joe e Louise (Emma Stone). Na construção desses espaços, a narrativa filtra tudo pela ironia de um diretor que parece não acreditar mais em moralidade alguma, ainda que essa leitura minha possa ser erroneamente cínica. O humor, sempre presente, ainda que disfarçado, emerge nas situações mais violentas, transformando o filme em uma comédia amarga sobre a falência das certezas.

O final, como era de se esperar do cineasta, mergulha de cabeça no absurdo e no clímax. Quando a violência irrompe, ela não vem como catarse, mas como consequência natural de um mundo que já estava em combustão. O riso e o horror se misturam até o último plano, deixando o espectador com a sensação de ter assistido a um apocalipse íntimo, mais humano do que sobrenatural dentro da filmografia do diretor. É um desfecho que reafirma a lucidez do diretor em sua visão cínica: não há monstros à espreita, há apenas pessoas incapazes de lidar com a própria liberdade. E nesse ponto, Eddington resgata o melhor de Aster, a capacidade de usar o horror como lente moral.

Mas, apesar de seus méritos, Eddington sofre daquilo que o próprio filme critica: a dispersão. Assim como os personagens se perdem em discursos e convicções, o filme também se perde em sua ânsia de falar sobre tudo. Faltam foco e ritmo, sobra comentário. Há sequências brilhantes, ideias potentes e momentos de ironia devastadora, mas também passagens longas que parecem repetir o mesmo argumento. É como se Aster, ao tentar capturar a histeria contemporânea, tivesse sido contaminado por ela. Seu cinema sempre viveu do desconforto, mas aqui a narrativa soa quase apática em determinados pontos, principalmente pelo mal uso de alguns personagens, como Vernon (Butler), Louise (Stone) e Ted Garcia (Pedro Pascal), todos mais próximos de caricaturas do que de personagens bem desenvolvidos.

Mesmo assim, Eddington é um bom filme. É imperfeito, irregular e surpreendentemente divertido. É o retrato de um tempo em que todos falam e ninguém ouve, em que as certezas valem mais do que os fatos, em que a verdade se tornou espetáculo. Aster não oferece respostas, apenas mostra o espelho de um período temporal confuso não só pela pandemia, mas por toda a paranoia que a cercou, com consequências presentes até hoje. O faroeste acabou; o duelo agora é digital e ideológico. E se o caos reina em Eddington, é porque ele já reinava fora da tela.

Eddington – EUA, 2025
Direção: Ari Aster
Roteiro: Ari Aster
Elenco: Joaquin Phoenix, Pedro Pascal, Luke Grimes, Deirdre O’Connell, Micheal Ward, Austin Butler, Emma Stone
Duração: 149 min.

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