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Crítica | Beau Tem Medo

Os limites do amor incondicional.

por Fernando Campos
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Ari Aster sempre se interessou pelo horror que surge em ambientes teoricamente seguros e relações que deveriam ser de confiança. Ainda em sua fase de curtas, em The Strange Thing About the Johnsons, vemos a dor de ter dentro de casa um filho abusador dentro de casa; em Hereditário, acompanhamos o rancor entre mãe e filho; e em Midsommar as consequências em uma garota de ter uma irmã suicida. Portanto, Ari Aster descobre o terror onde a sociedade espera amor, especialmente na família. Assim é na vida, as maiores dores vem daqueles que menos esperamos, resultando em traumas que carregamos até o fim de nossos dias. 

Aster leva esse conceito a outro patamar em Beau Tem Medo, mostrando um evidente amadurecimento do cineasta. Em Hereditário, ele apresentou um eficiente drama familiar, mas com uma fraca construção de gênero. Já em Midsommar o realizador intercala com eficiência um visual rebuscado com uma trama incômoda. Agora, em Beau Tem Medo, há uma madura reflexão familiar aliada a uma representação poderosa da ansiedade. A obra apresenta Beau Wassermann (Joaquim Phoenix), um homem paranoico que, após ter seus pertences roubados antes de pegar um vôo, entra em uma odisséia para chegar na casa de sua mãe, Mona Wassermann (Patti LuPone).

Como aponta um artigo de Daniel Kupermann para a Revista Cult, uma das teorias de Sigmund Freud para o trauma diz que uma criança, ao ser exposta a uma experiência erótica que não consegue interpretar, acaba desenvolvendo na vida adulta neurose, além de reprimir representações de sexualidade e desejo. Essa é justamente a fórmula que produziu Beau dentro daquele universo. Portanto, toda a direção de Aster visa transmitir para o público esse sentimento de neurose, ansiedade e até certa infantilidade de um homem que tenta eliminar a sexualidade dentro de si. Para isso, o diretor opta por uma fotografia que constantemente oprime o personagem, o colocando pressionado por outro elementos ou em plongée, e conta com uma direção de arte com cenários que flertam com uma falsidade intencional, justamente para nos fazer questionar a natureza daquele universo. Estamos vendo algo real ou apenas uma representação da mente do protagonista? Trata-se de um mundo realmente distópico ou esta é a visão ansiosa de Beau sobre as pessoas? Ao contrário, por exemplo, do didatismo do texto de Hereditário, Aster finalmente entendeu que deixar o público montar o quebra cabeça é uma experiência muito mais perturbadora do que entregar fatos escancarados, ainda que digam algo macabro. 

Em Beau Tem Medo, muito mais incômodo assistir o bizarro, como uma pessoa tomando um balde de tinta ou um pervertido viciado em esfaquear pessoas, é tentar decifrar qual trauma que transformou Beau em uma pessoa tão insegura. Nisso, o roteiro é brilhante ao nos provocar através de entrelinhas, como nas estranhas demonstrações de afeto de Mona, e a edição precisa nos momentos de flashback, curtos o suficiente para entregar apenas o necessário para nos instigar, sem exagerar em informações.

Através de toda essa construção minuciosa, o diretor pode, em um poderoso terceiro ato, debater aquilo que o colocou como referência dentro da indústria: relações familiares. Não fica claro o que realmente houve entre Beau e a mãe,mas a obra entrega o suficiente para identificarmos o abuso ali presente. O terror que permeia Beau não é o de uma mãe cruel, mas de uma pessoa perdidamente apaixonada pelo filho. Quando ouvimos ela dizer para o jovem protagonista “tenho orgulho do homem que você está de tornando”, as interpretações e fotografia provocativa de Aster não retratam o momento como belo, mas incômodo ao testemunharmos uma mulher que não abrirá mão do afeto do filho, mesmo precisando afastar pessoas para isso. O bizarro amor de Mona é o de uma pessoa que colocou aquela criança realmente como o homem da vida dela, seja na conotação que for, algo que o longa jamais deixa claro. Em certo aspecto, a experiência lembra o clássico Louca Obsessão ao mostrar uma pessoa tão apaixonada que está disposta a eliminar a saúde, a autonomia e a liberdade dessa pessoa. Gostem ou não de Beau Tem Medo, não há como negar a coragem de Aster de debater com tanta provocação a relação entre filho e mãe, algo que a sociedade ainda vê como algo sagrado e intocável, especialmente em ambientes cristãos, fechando os olhos para abusos que podem surgir dessa dinâmica e que apenas a vítima carrega consigo.

Portanto, Beau Tem Medo questiona: até que ponto o amor incondicional é positivo? Esse sentimento ajuda ou flerta com o abuso? Amar perdidamente um filho, com tentativas de afastar o “mal” da criança, protege ou atrapalha na criação da autonomia? Ao testemunhar a jornada de Beau, vemos que a proteção exagerada da mãe resultou em um homem incapaz de dizer não, amedrontado com a possibilidade de chatear os outros e que aguarda sempre o pior de todas as situações. Mas o drama do longa não para por aí, uma vez que Aster tampouco trata Beau como um coitado. Diante das possibilidades de autonomia, o homem sempre optou pela zona de conforto e culpa a mãe por consequências que ele construiu.

Todas essas nuances de Beau, um quase idoso que jamais amadureceu emocionalmente ou sexualmente, são brilhantemente construídas por Joaquim Phoenix, mostrando um sujeito que é quase uma criança presa no corpo de um velho, com uma voz para dentro e olhar perdido, mas sem soar caricato. Portanto, como a conclusão do longa estabelece de forma surpreendente, cabe ao público julgar os personagens. Inclusive, o julgamento por atitudes é a base da maioria das religiões e a imersiva trilha sonora de Bobby Krlic, com um uso bem espiritual de vozes, evoca a religiosidade da obra, fundamental para entendimento do terceiro ato. 

Vale ressaltar que, com uma proposta ousada e que flerta com épico pela duração, a edição nem sempre consegue encaixar todos os blocos do filme de forma orgânica. A sequência na floresta, ao fim do segundo ato, soa deslocada do restante da película. Porém, Aster constrói um longa tão incômodo e provocativo que partes supostamente incoerentes soam instigantes. 

Quem teve a sorte de crescer em um ambiente saudável e verdadeiramente amável, talvez veja Beau Tem Medo como um filme que opta pelo bizarro apenas pelo bizarro ou que identifique na obra até certa injustiça com os personagens. No entanto, aqueles que sofreram com relações baseadas em controle, ciúmes e retirada da autonomia, identificarão na obra o terror de não se sentir completo. A dor de ser uma peça dentro das expectativas de outra pessoa, resultando justamente em ansiedade. Uma peça como a de um quebra cabeça que a bizarra família de Roger e Grace monta com a imagem do filho na metade da projeção, que viu na criação das crianças seu projeto de vida, resultando em herdeiros repletos de problemas. Ou como uma peça na tentativa de Mona afogar as dores por não ter recebido o amor da mãe.

Às vezes, os filhos vêm ao mundo para receberem amor. Às vezes, fazem parte de um projeto pessoal dos pais, resultando em situações traumáticas. Em Beau Tem Medo, Ari Aster mostra como o processo de superar e aceitar o passado pode ser longo, cansativo e doloroso, mas é possível. Como o clímax do filme aponta, talvez um dia sejamos julgados pelos nossos pecados, mas até lá cabe a nós construirmos nossos próprios pecados e não pagar pelos pecados daqueles que nos criaram.

Beau Tem Medo (Beau is Afraid) – EUA, Reino Unido e Finlândia, 2023
Direção: Ari Aster
Roteiro: Ari Aster
Elenco: Joaquin Phoenix, Patti LuPone, Amy Ryan, Parker Posey, Nathan Lane, Armen Nahapetian, Stephen McKinley Henderson, Richard Kind, Kylie Rogers, Denis Ménochet, Zoe Lister-Jones, Julia Antonelli, Hayley Squires, Julian Richings, Bill Hader, Alicia Rosario, James Cvetkovski, Catherine Bérubé, Stephanie Herrera, Bradley Fisher, Peter Seaborne, Michael Esper, Manuel Tadros, Karl Roy, Anana Rydvald
Duração: 179 min

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