Existem histórias que, por si só, falam mais alto do que a forma como elas são contadas. E as razões para isso acontecer flutuam intensamente, pois elas conversam de maneira muito particular com o leitor/espectador, apelando para o puro emocional, para a curiosidade, para o quão estranho ela parece e assim por diante. E a história por trás de Éden, mais novo filme baseado em eventos reais dirigido por Ron Howard é, pelo menos para mim, um grande exemplo dessa minha afirmação, já que o cineasta, ao longo de sua carreira, mostrou-se inconstante, mesmo quando trabalha com um elenco de nomes importantes com é o caso aqui, com uma obra que conta com Jude Law, Vanessa Kirby, Daniel Brühl, Sydney Sweeney e Ana de Armas em papeis brutais.
Apesar de os melhores filmes capitaneados por Howard serem baseados em fatos (Apollo 13, Frost/Nixon e Rush imediatamente vêm à mente. mas não são os únicos), esse não é o caso aqui, pois o roteiro de Noah Pink (Tetris) inexplicavelmente deixa de lado o desenvolvimento dos personagens e envereda por um melodrama que dilui o poder dos acontecimentos a algo quase novelesco, com o diretor não conseguindo capturar boas performances ou equilibrar a narrativa para pelo menos ajudar a compensar os problemas do texto. E olha que havia tempo de sobra para tudo nos 130 minutos de duração da fita, mas é quase frustrante ver talentos desperdiçados em meio a uma história tão fascinante.
Mas eu estou me adiantando, já que nem sequer mencionar do que se trata o filme.
Trata-se da história de alguns europeus que, entre 1929 e a primeira metade dos anos 1930, deixaram tudo para trás e imigraram, com objetivos bem diferentes, para Floreana, uma ilha inóspita do arquipélago de Galápagos. Pode não parecer muito, mas os acontecimentos que se seguiram lembram demais Senhor das Moscas, o clássico romance que William Golding publicou originalmente em 1954, o que, pelo menos para mim, é um chamariz automático não só pelo assunto em si, como por funcionar como mais uma prova de que a humanidade só consegue viver em sociedade se houver regras muito claras e a imposição delas por autoridades bem definidas. Deixados à própria sorte, a tendência de grupos humanos ditos civilizados é reverter ao estado primal, deixando seus instintos basais tomarem conta, o que dificilmente levará a resultados pacíficos.
Já morando na ilha desde 1929, há o casal alemão formado pelo Dr. Friedrich Ritter (Law) e Dore Strauch (Kirby) que são os primeiros a se estabelecerem por lá para fugirem da vida em sociedade, dos apelos burgueses e, no caso de Ritter, para escrever seu tratado de filosofia, além de textos que ele esporadicamente manda de volta para a Alemanha na forma de cartas que são publicadas pelos jornais. E são essas cartas que acabam atraindo os demais imigrantes, com o casal Margret (Sweeney) e Heinz Wittmer (Brúhl) e o jovem Harry (Jonathan Tittel), filho de Heinz, chegando em 1932 para conhecer Ritter e Strauch, que Heinz trata como seus ídolos, e para estabelecer uma moradia definitiva em razão dos problemas por que a Europa em geral e a Alemanha em particular passam. Finalmente, não muito tempo depois, eis que chegam a Baronesa Eloise Bosquet de Wagner Wehrhorn (De Armas), seus dois amantes, Robert Phillipson (Toby Wallace) e Rudolph Lorenz (Felix Kammerer) e seu serviçal equatoriano Manuel Borja (Ignacio Gasparini) com o objetivo de construir um hotel para turistas.
Os conflitos são múltiplos e estabelecidos desde o momento em que a paz de Ritter e Strauch é quebrada pela família Wittmer, com a Baronesa tornando-se uma verdadeira agente do caos com sua vida hedonista e egoísta, com esse paraíso não demorando a se tornar um verdadeiro inferno para todos os seus nove habitantes humanos, com o roteiro de Pink tentando navegar essas águas turbulentas, mas perdendo-se em idas e vindas que não parecem ter outra função do que esticar a duração do filme, com Howard incapaz de oferecer personagens cativantes mesmo em sua torpeza, pois o objetivo não é, de forma alguma, criar empatia entre eles e o espectador, talvez com exceção da jovem esposa vivida por Sydney Sweeney em um bom papel para a atriz. Por outro lado, a fotografia quase sem cor de Mathias Herndl é um achado e faz das locações australianas que se passaram por Galápagos ganhar uma qualidade que eu chamaria de desesperadora, como um verdadeiro inferno na terra em que nada é bonito, abundante ou agradável, de maneira semelhante ao que Robert Zemeckis fez em Náufrago. O que há de beleza, de colorido, de alegra fica por conta da suposta Baronesa, com sua maquiagem e seus figurinos de cores fortes, além de sua aparente recusa em sequer assimilar que está em uma ilhota sem nenhum tipo de apelo ou infraestrutura, o que, claro, funciona muito bem para fazer da personagem uma verdadeira monstra dentro de outros humanos completamente reprováveis, vale dizer.
Mas o que faz Éden flutuar de verdade é sua história inusitada e assustadora, um verdadeiro experimento antropológico que tomou o imaginário popular da época na Europa, especialmente porque dois sobreviventes escreveram relatos bem diferentes do que ocorreu, sem que ninguém efetivamente saiba os detalhes do ocorrido. Claro que o roteiro de Noah Pink toma um partido e entrega o fim escolhido, sem deixar pontas soltas ou ambiguidades, mas é fascinante e também aterrador notar o quão próximos da barbárie nós vivemos e o quão rapidamente somos capazes de nos despir de nossos princípios para cometer atos atrozes e imorais. Não há dúvida alguma que o homem é o lobo do homem, ainda que os lobos não sejam nem de longe capazes de fazer os horrores que nós fazemos.
Éden (Eden – EUA, 2024)
Direção: Ron Howard
Roteiro: Noah Pink
Elenco: Jude Law, Vanessa Kirby, Daniel Brühl, Sydney Sweeney, Ana de Armas, Jonathan Tittel, Richard Roxburgh, Toby Wallace, Felix Kammerer, Ignacio Gasparini
Duração: 130 min.

