Guillermo del Toro sonhava com uma adaptação do clássico literário gótico de Mary Shelley há décadas e, se olharmos para o conjunto da obra do cineasta mexicano, levando em consideração seu apuro estético, sua imaginação e criatividade e sua capacidade de extrair beleza da monstruosidade, Frankenstein talvez seja o filme que ele nasceu para fazer. No mínimo dos mínimos era o caminho natural para sua carreira, algo que combinava tão bem com tudo o que ele já colocou nas telonas, que, mesmo que ele não tivesse passado anos a fio planejando sua versão de uma das obras mais famosas da literatura ocidental, ele acabaria se envolvendo com ela mais cedo ou mais tarde. E o Frankenstein de Del Toro é verdadeiramente dele, inconfundivelmente dele e, ao mesmo tempo, um cuidadoso e muito bem construído longa-metragem que sabe respeitar o material fonte da mesma maneira que o diretor e roteirista fez em seu magnífico Pinóquio.
Apesar da enorme quantidade de adaptações audiovisuais diretas do primeiro romance de Mary Shelley que existem por aí, ou seja, excluindo-se as obras que apenas pegam a base narrativa e fazem outra coisa mais distante, diria sem medo de errar que a de Del Toro é a melhor já feita. Mas essa afirmação, obviamente, não só é de cunho pessoal (e não poderia ser diferente, lógico), como passa longe de descartar o valor inegável de diversas outras versões que existem, incluindo a talvez mais clássica de todas, o Frankenstein de 1931 por James Whale, servindo apenas para estabelecer um parâmetro que deixa muito claro que o esforço de Guillermo del Toro é impressionante, ambicioso, majestoso mesmo, com um esmero espantoso na direção de arte e no design da sofrida criatura, algo que é amplificado pela ousadia de defenestrar a computação gráfica quase que por completo, focando todo o orçamento em efeitos práticos que são imediatamente capazes de envelopar o espectador na atmosfera gótica de sua obra.
Começando a história pelo fim, na região polar ártica, em 1857, com um navio dinamarquês comandado pelo Capitão Anderson (Lars Mikkelsen), que almeja chegar ao Polo Norte, completamente preso no gelo e cuja tripulação acha um Victor Frankenstein (Oscar Isaac) moribundo e perseguido por uma criatura monstruosa e aparentemente impossível de matar, o roteiro faz disso seu artifício de enquadramento, contando o que aconteceu até esse ponto em uma sucessão de longos flashbacks em dois capítulos distintos, um a partir do ponto de vista do criador e outro a partir do ponto de vista da criatura, mas não no estilo rashomônico, em que a mesma história é contada diversas vezes, mas sim como dois capítulos sucessivos de uma narrativa única. Vemos a infância de Victor (quando criança vivido por Christian Convery) oprimido pela presença dominadora de seu pai e obcecado pelos acontecimentos seguintes em um dia conquistar a morte, levando-o, já adulto, a mostrar-se incompreendido por seus pares e, subsequentemente, depois de uma demonstração macabra, patrocinado pelo endinheirado Henrich Harlander (Christoph Waltz), que é tio de Elizabeth Harlander (Mia Goth), por sua vez noiva de William (Felix Kammerer), irmão mais novo de Victor.
O que segue, daí, é a história conhecida por todos, mesmo por quem nunca leu o livro, mas com a suntuosidade macabra da visão única de Del Toro. Seu grande trunfo é retornar ao que o romance na verdade é e que algumas poucas adaptações procuraram seguir (notadamente o já citado filme de 1931), ou seja, não um filme de horror, mas sim uma tragédia sobre as consequências do Homem brincar de Deus. Na verdade, o diretor e roteirista vai além dessa premissa, pois Victor, egocêntrico e irresponsável, mais do que brincar de Deus, acaba rejeitando sua criação imperfeita, o que serve de base para o profundo e assustador vazio na construção do torturado personagem por Jacob Elordi, que rouba todas as cenas em que aparece por uma combinação de visual assombroso com atuação nuançada que contrasta e colide com a também excelente interpretação de Oscar Isaac, que, porém, faz seu personagem como um homem intensamente tomado pela obsessão e pela incapacidade de assumir seus erros. O que há de horror é o que poderia ser classificado como horror corporal, algo que pode ser constatado tanto na apresentação original de Victor Frankenstein diante de seus pares que o levam a julgamento, quanto com os corpos mutilados tendo seus pedaços colhidos pelo cientista para construir sua criatura, pois o que realmente fica para o espectador, por mais surpreendente que possa ser, é a melancolia – e, também, um pouco do melodrama, para ser honesto – do texto de Del Toro e do olhar de Elordi.
Em momento algum a Criatura é um monstro. O roteiro inequivocamente absolve aquele que é a vítima clara da insensibilidade de seu criador, que é mantido acorrentado como Prometeu no subsolo da torre que faz vezes de laboratório, empurrando toda a monstruosidade para a Humanidade, seja ela representada por Victor, por seu pai ou por Henrich. Se o que vemos nas sequências iniciais do longa parece mais com um monstro, logo entendemos que aquilo é resultado da dor, da tristeza, do abandono, da perda e do vazio que a Criatura sente e que Elordi consegue capturar tão bem mesmo coberto de próteses e maquiagem por todo seu corpo. Esse é o verdadeiro diferencial dessa versão de Frankenstein, algo que ganha materialização na cena em que a Criatura finalmente entende como ela veio a ser o que é, com um subtexto (que não é tão “sub” assim) de profunda religiosidade que Del Toro faz questão de salpicar, seja trazendo John Milton, seja trabalhando a iconografia correspondente, sem deixar de trazer elementos necessários da Mitologia Grega, como os paralelos com Prometeu e, claro, com a Criatura basicamente se vendo no enorme disco com a cabeça de Medusa no laboratório onde nasce.
Indo além, Del Toro fala da inescapabilidade da vida criada quando dá à sua Criatura um fator de cura semelhante ao de Wolverine, condenando-a à dor eterna de viver só, marginalizada, sem amor, mesmo que haja breves momentos de luz com conexão com o mundo ao seu redor, algo que se dá na fazenda em que a Criatura se esconde e pela ligação dela com Elizabeth, uma personagem importante, mas mal aproveitada e que não dá nenhum espaço para Mia Goth realmente mostrar a que veio (aliás, diria que o mesmo acontece com Christoph Waltz). No entanto, ao revés, o roteiro abre espaço para que tanto a Criatura quanto Victor trilhem outros caminhos, em uma mensagem que não descarta a beleza da vida e o dom que ela é, seja ela fruto da vontade divina ou da vontade humana.
Com cenários práticos de fazer o queixo cair, especialmente os vários níveis da torre laboratório de Victor Frankenstein, um design de criatura inesquecível, que reúne o grotesco com o belo, uma história macabra, mas também sensível e emocionante e atuações irretocáveis de Oscar Isaac e Jacob Elordi, Guillermo del Toro finalmente materializou seu sonho e conseguiu dar vida à Frankenstein em um filme cheio de identidade própria, mas reverente ao material fonte, e que não esconde seu escopo e sua ambição. Um monstruoso triunfo gótico de visão única que espanta, assombra, encanta e enternece.
Frankenstein (Idem – EUA, 2025)
Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro (baseado em obra de Mary Shelley)
Elenco: Oscar Isaac, Christian Convery, Jacob Elordi, Mia Goth, Felix Kammerer, Lars Mikkelsen, Christoph Waltz, Charles Dance, David Bradley, Lauren Collins, Sofia Galasso, Ralph Ineson, Burn Gorman
Duração: 150 min.
