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Crítica | Fúria (1936)

por Ritter Fan
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Fúria, o primeiro filme americano de Fritz Lang, tem seus problemas, mas a mensagem que passa é poderosa e, mais ainda, tão atual hoje quanto na época em que foi lançado. Afinal, se há um aspecto negativo nas tão adoradas redes sociais é a fácil e imediata criação do chamado Tribunal da Opinião Pública em que atos banais ou graves e, pior ainda, que foram ou não cometidos por determinada pessoa tornam-se verdades absolutas se um grupo grande e vocal o suficiente condená-lo, destruindo vidas no processo. Fazemos – sim, todos nós! – isso todos os dias, com consequências reais para muita gente com base no que “achamos” ou “ouvimos dizer” e nós nunca nos importamos com a verdade dos fatos ou temos a hombridade de assumir a culpa caso nossa verdade não seja a verdade.

Fritz Lang, que co-escreveu o roteiro com Bartlett Cormack com base em uma ideia – que era para ser uma peça teatral – de Norman Krasna, por sua vez baseada no caso Brooke Hart em que os acusados de sequestrarem um jovem foram mortos na prisão por uma turba de civis querendo vingança, cria uma história que começa claudicante, mas que se torna envolvente e urgente muito rapidamente depois que o amor entre Katherine Grant (Sylvia Sidney) e Joe Wilson (Spencer Tracy) é estabelecido como uma forma bem mão pesada de se plantar as pistas necessárias para o encerramento do longa-metragem. A premissa do filme é perturbadoramente simples, com Wilson sendo preso em sua viagem para casar-se com Grant e acusado de sequestrar um menino, resultando exatamente nos eventos do citado caso verdadeiro, mas com uma reviravolta: Wilson não morre, mas finge-se de morto para, com a ajuda dos irmãos, catalisar o julgamento – com a possibilidade de pena de morte – de 22 cidadãos que participaram do linchamento.

O cineasta é cuidadoso em seu trabalho, usando enquadramentos e caracterizações na longa sequência do cerco à delegacia, de forma a criar problemas para o espectador que é induzido a ficar com tanta raiva do ocorrido que é uma tarefa complicada passar a discordar da estratégia maliciosa de Joe Wilson de permanecer escondido para basicamente duas dezenas de pessoas pagarem com a vida por um crime que não cometeram. Mas o jogo é exatamente esse, ou seja, deixar às escâncaras o horror do crime coletivo cometido por toda uma cidade, com a única voz da razão, por um curto espaço de tempo, sendo a do xerife vivido por Edward Ellis, que faz todo o possível para evitar o pior, arriscando sua própria vida. É justamente por isso que o diretor não se preocupa em emprestar personalidades aos participantes do linchamento, tornando-os, todos eles, em uma massa única de fúria cega contra um homem que sequer começara a ser julgado por um suposto crime. É literalmente a representação do Tribunal da Opinião Pública em toda a sua sujeira, imoralidade e o mais completo descaso pela vida humana diante do que se percebe como “justiça do povo”.

O que parece realmente estranho e talvez seja resultado da vontade Lang de partir logo para o que realmente interessa, é a forma como ele lida com a passagem de tempo a partir do momento em que Joe é preso até a sequência do ataque à delegacia. Tudo parece ocorrer ao longo de algumas horas, especialmente considerando que Katherine é mostrada aguardando Joe chegar no ponto em que eles combinaram previamente, o que causa estranhamento pela sequência de acontecimentos rápida demais que exigiria pelo menos alguns dias para realmente funcionar. É quase como ver dois filmes ocorrendo, um que se passa em poucas horas e que é focado em Katherine esperando Joe e outro ao longo de dias em que a cidade é tomada por um sentimento equivocado de vigilantismo e justiça com as próprias mãos.

Mesmo assim, como disse, Lang está muito mais interessado nos fins do que nos meios, acelerando sua narrativa até o ponto em que o julgamento dos 22 cidadãos começa, alterando o tom do longa para o clássico “filme de julgamento”, ainda que sem trazer os detalhamentos típicos desse subgênero e colocando todo seu foco na promotoria. É que a mensagem passada pela premissa é realmente forte, um verdadeiro tapa na cara daqueles – de nós! – que leem uma manchete e já partem para conclusões condenatórias, sem qualquer chance de retratação.

Fúria pode não ter o apuro técnico e a qualidade de roteiro de obras que trabalham a moralidade do Homem em ambiente semelhante como Doze Homens e uma Sentença ou o senso de Justiça de O Sol é para Todos, mas a estreia de Fritz Lang em solo americano é inegavelmente uma súplica para que paremos e pensemos antes de agir, antes de sequer levantarmos a voz com alguma conclusão estúpida e ao mesmo tempo hipócrita que achamos ser a inegável verdade. Mas isso talvez seja pedir demais de nós, até que, um dia, estejamos do outro lado do olhar condenatória do todo poderoso e onisciente “público”, ou seja, até ser tarde demais…

Fúria (Fury – EUA, 1936)
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Bartlett Cormack, Fritz Lang (baseado em história de Norman Krasna)
Elenco: Sylvia Sidney, Spencer Tracy, Walter Abel, Bruce Cabot, Edward Ellis, Walter Brennan, Frank Albertson, George Walcott, Arthur Stone, Morgan Wallace, Gwen Lee, George Chandler, Roger Gray, Edwin Maxwell, Howard C. Hickman, Jonathan Hale, Leila Bennett, Esther Dale, Helen Flint, Frederick Burton
Duração: 92 min.

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