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Crítica | Gorbachev.Céu

por Davi Lima
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gorbachev

No auge da velhice, o ex-líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, é um poço de incoerências graciosas. O tempo cria teorias que fogem do concreto, que mistifica narrativas sobre um ser humano, um líder russo que é apropriado como figura pelas pessoas. Esse é um conhecimento bem básico, em que na leitura de documentos do processo de desconstrução da URSS, seja por propagandas, jornais ou documentários sobre a época, a concepção sobre o que Gorbachev de fato representa para o socialismo não forma concretude. Mas quando há a expectativa que a velhice do ex-presidente soviético possa significar a maturação de ideias e liberdade de discurso quanto à posição frágil da idade se tornando um anseio do entrevistador para concretizar narrativas, Gorbachev na verdade se funde num receptáculo de narrativa dialética concreta sobre o que ele significa para a História, em Gorbachev.Céu.

A dialética, que consiste em contradições de ideias para formar novas ideias em um campo antagônico, surge no filme com a ordinária e peculiar cena do gato caminhando vagarosamente na casa de Gorbachev. A curiosidade desse momento documentado, um dos primeiros do filme após mostrar a fachada da residência do líder político, estabelece a relação de senso comum que os felinos têm com as casas, nas quais eles sempre retornam a locais que por vezes não suas moradias, como se não necessariamente fizesse a correlação obrigatória do dono e seu lar. Embora o diretor possa ter gravado o passo a passo do gato caminhando no chão de madeira apenas como efeito de lentidão que toa o filme, a interpretação animal-casa representa bem a introdução espaço-temporal incoerente da residência do ex-presidente da União Soviética, agigantada em espaço, cheia de quadros sobre o político, transmitindo algum vídeo no computador sobre seus feitos quando Gorbachev dorme na cadeira. É como se o documentário já adiantasse de maneira precisa uma certa frustração de gestores de conhecimento gerais acharem respostas nas entrevistas com o protagonista.

A todo instante, bem diferente e ao mesmo tempo muito semelhante ao gato, Gorbachev é representado como deslocado em sua própria casa. A direção de Vitaliy Manskiy imprime um efeito de calma e de lentidão no documentário, mas percorre-se um sentimento também de um Gorbachev não acomodado nessa composição fotográfica e estilística da direção, mostrando o político como se sempre estivesse fugindo de algo, mesmo tranquilo e bem acostado em sua casa. O documentarista dita no filme algumas informações históricas e curiosidades, e uma delas é que a casa foi arranjada por apoiadores de Gorbachev após seu processo de renúncia ao poder da URSS. 

Essa informação é um misto de consideração, mas também de composição permissiva do diretor para compreender que existe um drama nessa história envolvendo a casa, até porque a casa tão espaçada soa mais como um museu do que um lugar privado. Em algum momento, o diretor mostra câmeras protegendo a casa, mas essa escolha na montagem aparece quando Gorbachev está contando suas histórias. A todo momento, o ex-presidente soviético parece divagar, fugir de perguntas ou entregar respostas aparentemente simplistas. Isso, junto à representação dele em sua casa, volta-se à peculiaridade do gato, na diferença de Gorbachev não ser representado acomodado pela fotografia, e na semelhança pela aparência de ele estar em casa e não considerá-la totalmente sua.

Só essas propostas antagônicas, ou aparentemente antagônicas, são o suficiente para formar um guarda-chuva contextual para as cenas propriamente de entrevistas com Gorbachev. Ao longo do filme Gorbachev.Céu, há dois desses momentos explícitos, em que o formato de gravação de entrevista é posto formalmente, e em ambos ele justifica a dialética do diretor. Pode ser que a princípio o planejamento de fotografia não intentasse em provocar uma dialética, porém o personagem Gorbachev, por ser conhecido em polaridade, em que alguns o consideram herói, outros vilão, tenha preparado o documentarista para a profusão de incoerência concreta que as respostas do documentado poderiam apresentar. 

Se no primeiro momento, em sua casa, ele se coloca como um socialista raiz, valorizando Lenin e ditando precisamente a errática dos democratas, ele também se coloca como único que de fato foi comunista, criticando Lenin como ditador. Apesar de que de início não soem ideias antagônicas, apenas uma visão em matiz de um figurante socialista, compreende-se uma confusão do entrevistador em captar lapsos de coerência, em que o espectador pode duvidar da lucidez do ex-presidente soviético ou ter uma experiência vacilante de acompanhar uma aparente divagação. 

De certa forma, é por isso que o diretor busca moldar um entretenimento, dando moldes temporais ao contexto da entrevista, assim como faz no espaço da casa como um todo. Como na já citada cena das câmeras, o material B-Roll, aquele material gravado que normalmente é usado para transições de cenas, parece ser usado para agilizar alguma possibilidade de morosidade. A verdade é que Gorbachev mora sozinho, possibilitando um ambiente pouco empolgante de acompanhar um documentário sobre um idoso com mais de 85 anos que não responde tão bem a algumas perguntas e parece decepcionar o entrevistador.

Seguindo ainda a dialética em Gorbachev.Céu, se as primeiras partes do filme parecem seguir tentando manter o foco narrativo enquanto Gorbachev se sente tranquilo divagando, como reflexo do exercício da memória, quando chega a segunda entrevista, agora em um cenário mais confrontador, com TV ligada mostrando Putin, o documentarista se torna mais enfático. E então, celestialmente, em uma concretização de uma graça na incoerência, Gorbachev fundamenta as narrativas nunca cessadas sobre sua posição binária para a geopolítica mundial. Em repetição, ele fala algo como “eu disse o que disse”, denotando uma acomodação em sua narrativa de profunda dialética nele mesmo. Quando perguntado sobre sua visão quanto aos povos que resistiram à unificação da URSS, por um lado ele denota contra a violência do governo com esses resistentes, mas justifica os massacres como tempos obscuros. E ainda mais, quando perguntado sobre o autoritarismo de Putin e a questão democrática, ele é confrontado com a narrativa europeia que o heroiciza, enquanto muitos russos o vilanizam. 

Se o diretor indicava em sua casa calma um Gorbachev deslocado no espaço que a câmera gravava, ou deformava as bordas da imagem para estilizar o aspecto “invasivo” e de descoberta sobre o ex-presidente, no ambiente mais escuro e mais confrontador, sem o molde estilístico, o líder parece satisfeito com as contradições em que é colocado em narrativas e que ele mesmo diz em poucas frases ditas. Ainda mais, na montagem se enfatiza também as incoerências em aparência, quando é colocado didaticamente quem eram os nomes citados por Gorbachev e os acontecimentos factuais, formando assim uma dialética mais expoente sobre o político nessa mesma incoerência que o filme parece também acomodar. Basta perceber como é incluído no filme uma entrevista com criadores de peça, em que artistas teatrais propõem fazer uma peça sobre a vida do ex-líder sovietico, na qual as perguntas focam mais na relação dele com a esposa e ouvir ele cantando, complementando a primeira entrevista na residência dele, quando na peça a cena de ensaio colocada no filme exalta a imagem incoerente do ex-presidente.

Assim, com uma finalização cíclica da fachada da residência de Gorbachev, da mesma maneira que um gato sempre volta à casa, seja sua moradia ou não, o documentário Gorbachev.Céu vai costurando uma dialética com incoerências de discurso, formando um efeito positivo e realmente intrigante que a imagem contraditória de narrativas antagônicas sobre Gorbachev ao longo do mundo parece apenas esquecer que ele canta, adora animais, cerveja e talvez não seja tão patriota quanto alguns esperam. 

Em geral, Gorbachev pode até querer ter estátuas e bustos de grandes líderes, ou ter uma morte bem homenageada no cemitério, mas antes disso, ele é o próprio muro de Berlim que se destrói e se reconstrói, um ser celestialmente contraditório. Nesse sentido, o que foi dito está dito, e nenhuma formação artística estática em forma representará os passos lentos e intensos de um idoso tão completo de contradições, que o tornam a própria dialética.

Gorbachev.Céu (Gorbachev.Heaven) – Letônia | República Tcheca
Direção: Vitaliy Manskiy
Roteiro: Vitaliy Manskiy, Alexander Gelman
Elenco: Mikhail Gorbachev, Vladimir Putin
Duração: 100 minutos

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