A filha de um homem de negócios de criação conservadora e religiosa desaparece e, depois de alguns meses, o detetive particular que ele contratou a localiza como atriz em um filme pornográfico, levando o pai a tomar para si a missão de encontrá-la e traze-la para casa. Essa é uma sinopse honesta de Hardcore: No Submundo do Sexo (o subtítulo em português é completamente desnecessário, mas bem descritivo do longa), que, com algumas variações aqui e ali, é usada para explicar a história do filme escrito e dirigido por Paul Schrader.
Causa-me espécie, porém, o repetido uso dos adjetivos “conservador” e “religioso” como que para racionalizar o porquê da indignação de Jake Van Dorn (George C. Scott) e sua relutância em envolver-se diretamente com o tal “submundo do sexo” para tirar sua filha de lá, pois não creio que eles sejam necessários para isso. Não que o personagem não seja “conservador” e “religioso”, pois ele é – e isso se dá porque Paul Schrader teve uma criação extremamente restritiva debaixo de seus pais calvinistas, a ponto de ele só ter assistido seu primeiro filme, conforme reza a lenda, aos 17 anos -, mas sim porque qualquer pai e qualquer mãe reagiria dessa forma se descobrisse que sua filha ou seu filho adolescente fugiu de casa (ou foi sequestrado) e acabou na indústria pornográfica, não é mesmo? Ser conservador ou progressista, religioso ou ateu não tem consequência alguma dentro dessa lógica para além de o filme ser Schrader extravasando sua crítica à forma como viveu quase 20 anos de sua vida.
O contexto sobre o diretor é essencial para que o roteiro de Hardcore justifique todo seu bem afetado terço inicial, em que a vida em Grand Rapids, no Michigan, cidade natal de Schrader, seja caracterizada quase que como um antro cultista de uma religião obscura, com direito a visitas diárias à igreja, rezas constantes antes de refeições, conversas nas varandas das casas gravitando ao redor de dogmas religiosos e, claro, um passeio de jovens patrocinado pela igreja local para Bellflower, na Califórnia que permite, então, o desaparecimento de Kristen (Ilah Davis), levando seu pai a contratar o detetive Andy Mast (Peter Boyle excelente como o escorregadio investigador) que, apesar de se provar razoavelmente eficiente, tem métodos que Jake não aprova, o que o faz tomar para si a investigação, o que inclui disfarçar-se de produtor de filmes pornográficos. O filme funcionaria da mesma maneira se Jake fosse, apenas, um pai solteiro duro com sua filha que não a deixa sair com seus amigos à noite, mas a escolha da religiosidade exacerbada – que funciona inclusive para criar o choque com o que vem em seguida – é uma abordagem autobiográfica proposital de Schrader que ele lida com mão pesada talvez demais.
No entanto, quando Jake efetivamente se muda para Los Angeles, o filme toma forma e ganha vida. É sem dúvida estranho aceitar que, literalmente da noite para o dia, o personagem transforma-se de um hesitante e pudico pai à procura de sua filha nos lugares mais “sujos” da cidade, a um pai com um plano razoavelmente complexo, com direito a hospedagem em motel de reputação duvidosa, uso de roupas mais despojadas e até disfarce com bigode falso e penteado diferente para fazer testes de elenco para sua próxima produção pornográfica, com direito até a anúncio em jornal e a conferência dos “instrumentos de trabalho” dos atores. A virada de chave, por assim dizer, é brusca demais e inverossímil demais, mas tudo o que tenho a dizer sobre isso é que George C. Scott, no finalzinho da década que lhe valeu o Oscar de Melhor Ator por Patton, Rebelde ou Herói e a indicação ao mesmo prêmio, no ano seguinte, por Hospital, faz funcionar muito bem.
Sim, Scott o contexto da busca do pai por uma filha para eliminar as barreiras entre o que podemos ou não acreditar com facilidade. Seu Jake é atormentado, mas é também um homem capaz de engolir a seco e deixar de lado suas crenças para lidar com um mundo que não entende e não quer entender, mas que ele simplesmente precisa navegar de maneira a localizar Kristen não exatamente para levá-la de volta, mas sim para entender o que aconteceu e o quanto do que aconteceu é sua culpa. Jake é uma alma torturada e um pai dedicado, mas que claramente negligenciou sua filha sem talvez perceber o que (não) estava fazendo, algo que fica ainda mais evidente quando ele consegue arregimentar Niki (Season Hubley), prostituta e atriz pornô ocasional, para seu lado da luta, o que permite que Schrader finalmente desconstrua o pai consternado e o faça enxergar, ainda que por alguns momentos, que quem trabalha nessa indústria também é humano, também tem sentimentos.
A conexão entre Scott e Hubley é excelente desde os primeiros segundos em que eles se encontram em lados opostos de uma cabine de sexo em que ele a vê, de peitos de fora e pernas abertas, através de um vidro embaçado por esperma de ejaculações e uma conversa começa com ela ainda nessa posição mais… digamos… relaxada. Chega a ser cômico, mas a dupla está perfeita nessa situação, com especial destaque o ator veterano que encontra o equilíbrio exato entre o homem horrorizado, mas levemente fascinado e o pai desesperado. E, quando Jake e Niki passam, então, a mergulhar mais ainda neste submundo, encontrando ramificações infinitamente mais perturbadoras, uma conexão filial é estabelecida entre eles, algo que Schrader carrega até o final agridoce, mas realista.
Hoje em dia, Hardcore provavelmente será encarado como um filme bem menos impactante do que talvez tenha sido quando foi lançado, mas eu duvido que qualquer pai ou mãe – com qualquer tipo de criação – não se compadeça pela luta de Jake para encontrar Kristen e pelas dúvidas que o desaparecimento da jovem geram sobre o que talvez esse pai ou mãe tenha feito de errado para que ela chegasse a esse ponto. O uso da indústria pornográfica como uma maneira de levar a história ao exato oposto do que vemos em seu começo é, apenas, um bom subterfúgio para tornar tudo ainda mais urgente e desesperador, além de criar toda a infraestrutura narrativa, claro, mas qualquer pai ou mãe sabe que até mesmo perder o filho ou filha de vista momentaneamente, por alguns segundos, em algum parque ou rua, já é causa suficiente para aquela angústia se abater. Paul Schrader sabe disso e faz de seu filme um muito bem trabalhado instrumento de tortura parental.
Hardcore: No Submundo do Sexo (Hardcore – EUA, 1979)
Direção: Paul Schrader
Roteiro: Paul Schrader
Elenco: George C. Scott, Peter Boyle, Season Hubley, Dick Sargent, Leonard Gaines, Dave Nichols, Gary Graham, Larry Block, Marc Alaimo, Leslie Ackerman, Charlotte McGinnis, Ilah Davis, Paul Marin, Will Walker, Hal Williams, James Helder, Reb Brown, Tracey Walter, W. K. Stratton
Duração: 108 min.