Hedda Gabler, peça do grande dramaturgo norueguês Henrik Ibsen de 1891, é uma obra-prima além de seu tempo que corajosamente aborda a vida da recém-casada personagem titular que se vê presa a uma casa e a um marido que não lhe dão satisfação. Trata-se de uma mulher acorrentada a mandamentos da sociedade – que não mudaram tanto assim de lá para cá – que procura sopros de sua vida pregressa na medida em que a trama é desenvolvida. Apesar de o assunto ser corrente até os dias de hoje e existirem diversas adaptações diretas da obra, a verdade é que elas rarearam dos anos 90 para cá, com a última vez tendo sido uma produção britânica de 2016 que, porém, não ganhou nenhum tipo de destaque mundialmente. Quase 10 anos depois, então, Nia DaCosta (A Lenda de Candyman, As Marvels) vem para novamente resgatar a peça, em uma produção que se vende como uma reimaginação do material original, mas que surpreendentemente se mantém muito próximo de sua estrutura central, seja em termos de desenvolvimento de personagens ou dos eventos que se sucedem ao longo da minutagem.
Mantendo-se como uma obra de época em uma produção suntuosa, o simplesmente intitulado Hedda (uma escolha simples, mas hábil considerando a discussão na peça e no filme sobre Hedda ser Gabler, mulher independente e filha de um general, ou Tesman, sobrenome do marido, indicando sua acomodação aos ditames do que se espera dela), é o primeiro filme de DaCosta desde seu primeiro em que ela escapa de uma franquia e também marca o retorno de sua parceria com Tessa Thompson como protagonista, também vindo de sua estreia em longas, Passando dos Limites, de 2018. Tudo se passa em apenas um lugar, a mansão comprada pelo casal recém-casado Hedda (Thompson) e George Tesman (Tom Bateman) que passou por uma extensa reforma quando os dois estavam em uma lua de mel de meses, mas em diversos ambientes, inclusive no enorme jardim, com o longa usando o recurso do enquadramento que começa depois dos eventos principais, com Hedda sendo interrogada por policiais e, então, contando o que aconteceu durante a festa de inauguração da casa.
Habilmente, DaCosta nos apresenta à anfitriã sem perder tempo para revelar sua natureza inquieta, até certo ponto incapaz de acomodações, e a fragilidade financeira do casal que muito claramente vive muito acima de seus meios, com George prestes a ser aceito como professor e pesquisador universitário, com todos os demais personagens centrais, notadamente o juiz Roland Brack (Nicholas Pinnock), que ajudou o casal a adquirir a mansão e que tem uma agenda própria em relação à Hedda, Thea Clifton (Imogen Poots) pesquisadora que chega sem convite e que tem um relacionamento homossexual com Eileen Lovborg (Nina Hoss) e, algum tempo depois, a própria Eileen, que tem um passado com Hedda e problemas com alcoolismo e que, não demoramos a descobrir, disputa o mesmo cargo universitário com George, para a surpresa dele. É a tensão construída entre Eileen e Hedda que acende o pavio destruidor e autodestrutivo da protagonista que passa a trafegar pela festa deixando um rastilho de pólvora a ser acendido no momento certo, com um propósito específico mesmo que a própria Hedda não tenha exata ciência ou controlse sobre o que quer para além de sua necessidade de agir por conta própria, como Gabler e não como Tesman.
Com uma direção de arte que explora cada ambiente da mansão e belos figurinos de época, com especial destaque para o vestido de Hedda com enorme decote que deixa à mostra um colar em que a chave da caixa de armas herdada de seu pai está pendurada e o de Eileen, usado narrativamente para criar um dos momentos mais dolorosos da projeção em que a pesquisadora, prestes a terminar seu manuscrito mais valioso, adentra uma sala onde os homens se reúnem para mostrar mostrar suas habilidades que deveriam lhe valer o cargo, sem saber que ela mostra muito mais do que isso graças às maquinações de Hedda. DaCosta é muito hábil na forma como faz da casa um ser vivo que não só alberga os convidados, mas que é também sempre objeto das conversas, um verdadeiro símbolo da âncora que a própria Hedda permitiu que fosse jogada em sua vida, com a protagonista aos poucos tentando desvencilhar-se dela – como representante da perda de sua vivacidade e liberdade – de seu jeito ardiloso e egoísta.
A música e a sonoplastia são destaques dramáticos importantes. No primeiro caso, a trilha sonora é quase que completamente diegética, estabelecendo o ritmo dos eventos e marcando o tempo dos eventos como se houvesse um relógio em tela, expressando com grande acurácia a temperatura narrativa, por assim dizer, algo que fica particularmente mais notável a partir da entrada de Eileen na história, já com a casa cheia. A sonoplastia pode ser resumida a um som que mistura suspiro e grito suprimido que funciona como elemento sonoro de transição de cenas e de marcação dos fins dos capítulos da história. Ele parece estabelecer, como a trilha sonora, a urgência da história, mas, nesse caso em particular, apenas de Hedda, como um monstro querendo libertar-se da personagem.
O elenco, por seu turno, assume os papeis com incrível força, mesmo Bateman que tem o papel mais ingrato, por seu personagem ser fraco e não exatamente compreender o que acontece a seu redor, o exato oposto de Pinnock e seu Brack, constantemente em controle. Mas os destaques, claro, ficam por conta de Thompson e Hoss que erigem personagens bem diferentes, mas igualmente intensas, a primeira agarrando-se a uma fleuma artificial para Hedda que, aos poucos, vai mostrando suas garras e a segunda, inicialmente forte tanto visual quanto mentalmente, aos poucos faz o caminho inverso e vai desparecendo dentro da ciranda destrutiva iniciada e controlada por sua ex-amante. Poots, em meio ao embate de Thompson e Hoss faz o que seu personagem exige: permanece completamente ciente da aceleração dos eventos, mas completamente incapaz de fazer alguma coisa para evitar a colisão.
Hedda Gabler é uma fascinante personagem que nunca pode ser esquecida na cultura pop e Nia DaCosta consegue trazê-la à tona com graça e força em uma produção visualmente deslumbrante e narrativamente corajosa que atualiza os temas sem desnecessariamente modernizar a história, entregando um longa que ao mesmo tempo reconhece a prisão em que a protagonista vive e sua capacidade de desvencilhar-se dos grilhões sem levar em consideração o preço alto para isso. É um filme que fala alto, mas sem gritar e, no processo, revitaliza a grande obra de Ibsen para uma nova geração.
Hedda (Idem – EUA, 2025)
Direção: Nia DaCosta
Roteiro: Nia DaCosta (baseado em peça de Henrik Ibsen)
Elenco: Tessa Thompson, Imogen Poots, Tom Bateman, Nicholas Pinnock, Nina Hoss, Kathryn Hunter, Finbar Lynch, Mirren Mack, Jamael Westman, Saffron Hocking
Duração: 107 min.