O primeiro filme de Paul Thomas Anderson já revela, em seu esqueleto narrativo e na pulsação dos diálogos, um cineasta que se recusa a seguir o caminho fácil. Jogada de Risco (Hard Eight) é uma obra que nasce pequena, quase discreta, mas que caminha com um subtexto moral e humano que o tempo transformaria em uma marca registrada do diretor. Não há aqui o gigantismo barroco de Magnólia, nem o épico de tensão em Sangue Negro, mas já há o mesmo olhar preciso para personagens frágeis e perdidos tentando encontrar alguma forma de redenção em meio a uma realidade dura, marcada pela casualidade e pelas regras invisíveis de poder.
A história é aparentemente simples: um homem mais velho, Sydney (Philip Baker Hall, numa atuação serena e hipnótica), encontra John (John C. Reilly), um jovem sem rumo, perdido em frente a uma lanchonete. Há uma bondade prática no gesto de Sydney: ele o leva para Reno, ensina a manipular o universo dos cassinos, oferece abrigo, proteção e uma espécie de substituto de paternidade. O enredo se constrói nesse equilíbrio delicado entre mentor e aprendiz, mas logo se expande ao incluir Clementine (Gwyneth Paltrow), uma garçonete e prostituta ocasional, e Jimmy (Samuel L. Jackson), figura perigosa que insere tensão e ameaça em um ambiente já marcado por silêncios carregados.
O mérito de Anderson é filmar esse drama quase como se fosse uma história de fantasia oculta dentro do realismo mais cru. As luzes artificiais dos cassinos, a monotonia dos quartos de hotel, os corredores vazios, tudo é captado pela câmera com uma atenção que beira o ritualístico. Sydney é um homem de gestos calculados, e a direção reflete essa economia: planos longos, montagem precisa, fotografia que evita o espalhafato e prefere a solidez das linhas retas, os claros-escuros que transformam a rotina em suspense. É como se o filme inteiro respirasse na cadência de Sydney, cada corte marcado pela contenção de um homem que vive de controlar situações e esconder segredos.
O núcleo dramático é construído em cima das relações. John é um personagem quase infantilizado, carente de guia, e Reilly interpreta essa ingenuidade com uma doçura patética, tornando-o ao mesmo tempo ridículo e tocante. Paltrow, em Clementine, entrega uma das primeiras provas de sua capacidade de transformar uma figura aparentemente frágil em um amálgama de ternura e perigo, alguém que não controla o próprio destino, mas que arrasta os outros em sua queda. E Samuel L. Jackson, em seu curto mas decisivo papel, oferece o contraponto: se Sydney representa ordem e disciplina, Jimmy encarna o caos e a chantagem, a lembrança de que nenhum segredo fica enterrado para sempre.
O suspense moral do filme está justamente no que não se diz. Por que Sydney ajuda John? O que o move? As pistas são lançadas aos poucos, e o grande acerto de Anderson é nunca forçar a revelação, preferindo deixar que a tensão cresça até o confronto final. A cena em que Sydney precisa lidar com a ameaça de Jimmy é exemplar desse estilo: seca, sem excessos, construída no poder dos diálogos e no peso dos olhares. É nesse momento que o título original do filme (Hard Eight, referência ao lançamento de dados) ganha sentido simbólico: a vida é um jogo de sorte e risco, mas também de cálculo silencioso, onde um gesto errado pode custar tudo.
Tecnicamente, o filme já demonstra a predileção de Anderson pelo poder dos diálogos extensos e pela música como elemento dramático. A trilha de Jon Brion insinua melancolia e ameaça, acompanhando as transições emocionais sem sobrecarregar as cenas. A câmera prefere a proximidade, o rosto dos atores é filmado como paisagem principal, e cada pausa no diálogo ganha um peso quase coreográfico. A atmosfera noir é inescapável: homens solitários, mulheres perdidas, chantagens, segredos enterrados, mas aqui tudo é filtrado pela sensibilidade de um cineasta interessado menos no crime em si e mais no impacto moral e afetivo das escolhas.
É interessante perceber como, mesmo em sua estreia, Anderson já esboça um de seus grandes temas: a ideia de família construída a partir de vínculos improváveis, de pessoas deslocadas que se encontram e tentam inventar uma forma de pertencimento. Sydney, John e Clementine formam, de certo modo, uma família torta, sustentada por laços frágeis de confiança e necessidade. O cinema de Anderson, em várias fases, retorna a essa pergunta: como construir uma comunidade (seja ela familiar, religiosa, artística) em um mundo que parece destinado a desmoronar? Em Jogada de Risco, a resposta é mais contida, quase amarga, mas já está lá.
O desfecho é exemplar: Sydney, finalmente revelado em sua verdadeira natureza, recorre à violência para preservar sua máscara de homem respeitável. O que parecia gesto altruísta é, no fundo, uma forma de penitência. Ele protege John, mas também tenta redimir o próprio passado, como se cada ato de bondade fosse uma tentativa de apagar a culpa. Anderson não julga, apenas observa: o mentor não é herói, mas também não é vilão, e essa ambiguidade moral dá ao filme uma densidade rara em estreias.
Jogada de Risco pode não ter o brilho imediato de outras obras de Paul Thomas Anderson, mas é uma estreia notável por sua maturidade. É um filme de atmosfera, de silêncios carregados, de tensão construída com a paciência de quem observa pessoas se movendo em ambientes áridos. Olhando pelo lado negativo, é uma obra que pode soar vazia e meio arrastada em um roteiro que ainda carece de algo a mais e que em determinados momentos parece até superficial em sua falta de material, mas, no fim, o que sobra não é a trama em si, mas o peso dos vínculos: um gesto de carinho, uma mentira bem-intencionada, um segredo guardado até o último momento. Um filme sobre redenção improvável, sobre como o acaso pode juntar pessoas quebradas em laços frágeis e, ainda assim, significativos. Anderson já começava aqui a pavimentar uma das filmografias mais intrigantes do cinema americano contemporâneo.
Jogada de Risco (Hard Eight – EUA, 1996)
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Philip Baker Hall, John C. Reilly, Gwyneth Paltrow, Samuel L. Jackson, F. William Parker, Philip Seymour Hoffman
Duração: 102 min.