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Crítica | Kokuho – O Mestre Kabuki

O alto preço da perfeição.

por Ritter Fan
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Com admirável sensibilidade e delicadeza, o diretor japonês de ascendência coreana Lee Sang-il, responsável, dentre outros, pelo remake de Os Imperdoáveis, trouxe às telas um épico sobre a dedicação ao perfeccionismo artístico que aborda a vida de um ator fictício de teatro kabuki de meados dos anos 60 até 2014 a partir de roteiro de Satoko Okudera que adapta romance homônimo que Shûichi Yoshida publicou em 2018. Sem pressa e ao longo de quase três horas, o cineasta consegue não só fazer qualquer um entender o que é e a importância dessa manifestação artística criada no Japão no século XVII e como os atores que querem perseguir o título de Tesouro Nacional, que é o que Kokuho significa em tradução literal, precisam dedicar suas vidas inteiras a treinamentos e ensaios árduos, especialmente na categoria onnagata, que é a objeto do longa.

Como o shogunato da época em que o teatro kabuki surgiu considerou a atividade como uma contribuição à decadência da moralidade, mulheres foram proibidas de atuar, cabendo então aos homens, assumirem também esses papéis, surgindo, então, os onnagata (ou “papel feminino”) que, ao longo do tempo, tornaram-se os mais desejáveis nessa arte, continuando até os dias atuais. Kokuho – O Mestre Kabuki começa em 1964, com o jovem de 14 anos Kikuo Tachibana (Sōya Kurokawa) sendo um onnagata amador em uma peça montada em um jantar em honra a seu pai, um líder da Yakuza, logo recebendo elogios de um dos ilustres convidados, o ator veterano de kabuki Hanai Hanjiro II (Ken Watanabe). Com o assassinato de seu pai, o jovem é albergado por Hanai como seu aprendiz, passando a treinar ao lado de seu filho, Shunsuke Ōgaki (Keitatsu Koshiyama), com os dois logo iniciando ao mesmo tempo uma amizade e uma rivalidade.

Já nesse início, fica evidente o treinamento complexo e duro necessário para ser meramente um ator passável nessa arte, além de outro aspecto essencial: no kabuki, sangue é tudo, pelo que novos atores só costumam surgir com parentesco direto de atores já estabelecidos. O conflito entre talento e hereditariedade, portanto, passa a ser um elemento essencial no desenvolvimento da narrativa, pois coloca um ônus a mais no naturalmente hábil Kikuo. Com uma passagem temporal, os jovens atores são trocados e Kakui passa a ser vivido por Ryo Yoshizawa e Shusuke por Ryusei Yokohama e é a partir desse ponto que a história começa a ganhar capilaridade, tornando-se um cuidadoso emaranhado de situações que envolvem técnica, orgulho e dom artístico, algo que também ganha reflexos em Hanai e sua vontade de ascender a um  ponto ainda mais alto em sua já mais do que festejada carreira. E é também com a entrada dos dois atores jovens principais, que muito claramente se dedicaram tremendamente ao seu ofício, é que vem toda a alma da narrativa.

Há uma reverência grande da produção na forma como o teatro kabuki é apresentado. Tudo é perfeito, imaculado, desde a maquiagem dos onnagata, passando pelos impressionantes figurinos e pelo cuidadoso cenário dos teatros, além dos delicados efeitos práticos. Para ajudar a plateia ocidental, no começo de cada exibição, há um breve resumo sobre a história da peça na forma de texto na tela que abre então espaço para Lee Sang-il fazer “teatro filmado”, mas sem necessariamente ater-se à câmera parada, já que muito do tempo é dedicado os minuciosos movimentos corporais dos atores e, claro, aos seus rostos que ganham inclementes close-ups. Ficam evidentes os dois mundos que existem no filme e também na vida real: aquilo que está no palco e o que está nos bastidores e esses dois mundos nem sempre são harmônicos.

Na medida em que a trama ganha corpo, os dramas dos dois jovens e subsidiariamente também o de Hanai vão ganhando movimentos que são tanto convergentes quanto divergentes, com o roteiro, em alguns momentos, pecando na forma como desenvolve determinados elementos que são relevantes mais para a frente, como é por exemplo o relacionamento distante de Kakui com sua filha, que ganha pouquíssimos minutos para que o espectador se aclimate com o novo status quo que, não demora, pela obsessão do jovem, acaba sendo eliminado quase que por completo do filme, só retornando nos minutos finais. E, nesse movimento de ascensão e queda dos personagens – não necessariamente nessa ordem e não apenas uma ascensão ou uma queda – algo semelhante acontece com Shunsuke já em sua fase de meia-idade que vem como uma semi-surpresa que não deveria ter sido surpresa alguma, na verdade, por seu desenvolvimento ter sido artificialmente excluído justamente para levar a uma revelação importante.

Mas Kokuho – O Mestre Kabuki vai a fundo no preço que se paga pela perfeição e deslumbra o espectador – talvez especialmente o ocidental – pela maneira como o teatro kabuki é apresentado. Talvez o roteiro não alimente todas as linhas narrativas da forma como deveria, mas diria, sem receio de errar, que a minutagem considerável do longa foi muito bem empregada para materializar o kabuki como poucas vezes tive oportunidade de ver. Um grande épico que, sem dúvida, alguma merece destaque.

Kokuho – O Mestre Kabuki (国宝 / Kokuhō – Japão, 2025)
Direção: Lee Sang-il
Roteiro: Satoko Okudera (baseado em romance de Shûichi Yoshida)
Elenco: Ryo Yoshizawa, Sōya Kurokawa, Ryusei Yokohama, Keitatsu Koshiyama, Ken Watanabe, 
Mitsuki Takahata, Shinobu Terajima, Nana Mori, Ai Mikami, Kumi Takiuchi, Masatoshi Nagase, Emma Miyazawa, Takahiro Miura, Kyusaku Shimada, Tateto Serizawa, Nakamura Ganjirō IV, Min Tanaka
Duração: 175 min.

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