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Crítica | Laranja Mecânica

por Ritter Fan
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É incrível imaginar que Laranja Mecânica foi, de certa forma, um acidente de percurso na carreira cinematográfica de Stanley Kubrick. Depois de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, o diretor envolveu-se com seu famoso projeto de estimação, sobre Napoleão Bonaparte. Ele havia recebido uma cópia do livro de Anthony Burgess do roteirista Terry Southern, que havia trabalhado na revisão do roteiro de Dr. Fantástico, anos antes, mas acabou deixando-o de lado.

Como Napoleão nunca foi para frente, para grande frustração de Kubrick, ele se voltou ao livro de Burgess, adorando o material e trabalhando imediatamente, ele mesmo, em um roteiro cinematográfico. Acontece que a versão do livro que Kubrick tinha em mãos era a versão lançada nos Estados Unidos, sem o último capítulo, que mostrava que Alex, o protagonista, exercia finalmente seu livre arbítrio e escolhia ser uma pessoa boa. Isso acabou sendo um dos pontos que levou Burgess a ser hesitante em abraçar a  adaptação cinematográfica de Kubrick, mas essa é apenas uma das incríveis histórias que cercam esse filme.

Laranja Mecânica pode ser visto como um playground estilístico de Kubrick, onde ele trabalhou diversas técnicas diferentes, unindo-as em um espetacular todo que, mesmo depois desses anos todos, ainda marca a Sétima Arte como uma das obras cinematográficas mais lembradas e mais instigantes.

Trabalhando com grande angulares para reforçar a impressão de sonho e jamais se esquecendo da maravilhosa simetria que marca todas as grandes obras de Kubrick, o diretor nos apresenta a Alex (Malcolm McDowell), o líder de seus druguis. Juntos, eles formam uma gangue que adora beber leite-com no Lactobar Korova e sair pela noite dando tolchoks em vekios e fazendo entra-e-sai em devotchkas.

Mas Alex também é o narrador e, usando esse artifício, Kubrick nos desarma. Afinal de contas, a narração nos coloca cúmplices de Alex, seus amigos íntimos, seus parceiros. Passamos, imediatamente, mesmo que secretamente, a torcer por ele. E olha que a ultra-violência que ele comete é revoltante ao extremo, mesmo que Kubrick tenha feito malabarismos para estilizá-la e distorcê-la, criando uma qualidade de delírio às cenas mais fortes.

Mas, mantendo-nos ao lado de Alex o tempo todo, nós o vemos espancar um mendigo, lutar com uma gangue rival que estava para estuprar uma mulher e, finalmente, invadir o lar de um casal para espancar o marido e estuprar a mulher, tudo isso ao som de Cantando na Chuva, cantarolada diretamente pelo protagonista (essa escolha foi de momento de McDowell e Kubrick embarcou na ideia). Odiamos Alex e seus druguis, mas não temos opção. Quando acordamos desse transe de leite-com, que continua por outra noite ainda, Alex está preso por seus crimes. São 14 anos atrás das grades, mas não demora e uma Inglaterra quase totalitarista coloca nosso “herói” em um programa pioneiro para “curar” a maldade.

A cura é certamente tão ou mais polêmica do que os atos perpetrados por Alex e resume-se ao condicionamento do criminoso exatamente como Pavlov fez com seu famoso cachorro. Tocou a sineta, o cão saliva, não é? Em Laranja Mecânica, se o ex-criminoso pensa em violência ou sexo não consentido, ele começa a passar mal, literalmente com vontade de se matar. Foi-se o livre arbítrio.

Passamos a sofrer, então, com Alex. Se antes fomos inadvertidamente cúmplices, agora realmente nos preocupamos por nosso “herói”. Suas opções se limitaram a cumprir ordens que foram subliminarmente queimadas em seu cérebro. Como efeito colateral, aliás, foi-se seu amor pela 9ª de Beethoven (ou “Ludwing Van”, como ele chama o compositor), pois a música serviu de trilha para os horrores que foi obrigado a assistir durante seu condicionamento.

Kubrick sabia o material quente que tinha em mãos e ele não se furtou de escancarar para o público os males do totalitarismo, do dirigismo e do condicionamento. O filme é sim uma ode ao livre arbítrio, mesmo que Burgess tivesse preferido seu próprio final.

Muitos disseram e ainda dizem que a fita vangloria a violência. O filme foi criticado duramente por críticos e psicólogos à época que cegamente defendiam que ele poderia influenciar o comportamento de jovens, que imitariam os druguis em noites de ultra-violência. Laranja Mecânica foi o primeiro filme a colocar essa discussão na mesa de maneira mais contundente, discussão que continua até hoje, para o desespero dos amantes das artes. Até mesmo Kubrick, influenciado pelo que ouvia, providenciou o banimento da fita dos cinemas ingleses até sua morte.

No entanto, com todo respeito, achar que filmes violentos (ou qualquer outro tipo de obra de arte com esse mote) influenciam violência real, é de uma besteira inominável. O ser humano é mais forte do que esse tipo de influência. Se algum sociopata por acaso assistir a um filme e cometer um crime, a culpa não é do filme, mas sim de sua sociopatia, que certamente terá origens mais profundas do que ações que ele vê em uma tela de cinema ou televisão. Além do mais, reduzir Laranja Mecânica a “filme violento” só demonstra ignorância, pois se fica uma coisa clara no trabalho de Kubrick é sua condenação à violência. Laranja Mecânica é filme anti-violência se que é isso existe. As cenas chocantes estão lá por uma razão e não por que Kubrick é um diretor doentio.

Malcolm McDowell tem a atuação de sua vida. Ele está tão investido em Alex que só vemos Alex e não o ator por trás. Sua voz penetrante ecoa em nossa cabeça e nos cativa poucos segundos depois que sua brilhante narração começa. Seu único olho com um cílio postiço, chapéu preto chapliniano e macacão branco com suspensórios já estão lá nos anais da História do Cinema como elementos de uma das mais inesquecíveis composições de personagem já feitas.

Videar Laranja Mecânica é horrorshow, um verdadeiro tolchok nos categutes!

*Crítica originalmente publicada em 18 de janeiro de 2014.

Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, Reino Unido/EUA – 1971)
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick (baseado em romance de Anthony Burgess)
Elenco: Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates, Warren Clarke, John Clive, Adrienne Corri, Carl Duering, Paul Farrell, Clive Francis, Michael Gover, Miriam Karlin, James Marcus, Aubrey Morris, Godfrey Quigley, Sheila Raynor
Duração: 136 min.

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