Home FilmesCríticasCatálogosCrítica | Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio

Crítica | Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio

A natureza cearense e brasileira das lutas de classe.

por Davi Lima
22 views

Lua Cambará

No chamado Cinema de Retomada, mais ou menos entre o período de 1995 e 2002, o cinema brasileiro tinha a proposta de se lançar ao mercado cinematográfico e ao público ao mesmo tempo. Depois de tempos tenebrosos do Governo Collor, de um ano sem nenhuma produção brasileira no cinema, praticamente, a visão majoritária era de vender o que era o Brasil para os estrangeiros, num estilo de cinema clássico hollywoodiano, ou até mesmo mais publicitário. Nesse contexto que Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio é lançado em 2002, filme cearense do diretor Rosemberg Cariry.

É filme característico desse cenário do cinema, apresentando sua história do ponto de vista de uma personagem internacional, vindo de helicóptero para o sertão dos Inhamuns no Ceará. Porém, o grande projeto da Cariry Filmes por trás do longa é arqueológico e histórico, como um Cinema Novo reinterpretado. Preserva-se a dialética de Glauber Rocha, mas se abre para um olhar fantasioso para lutas de classes materiais da história do Brasil e do Ceará.

Assistir Lua Cambará, e o cinema de Rosemberg Cariry, é ver pinturas do século XIX em movimento. Hoje, pensar em pinturas é pensar no passado. No estudo de iconografia histórica, as pinturas desenham o imaginário social, assim como charges e quadrinhos, mais atualmente. Então, com um percurso narrativo bem objetivo, o diretor utiliza o viés religioso e mitológico do Ceará para tornar a forma intelectual do filme mais sensível ao espectador. Começa com helicóptero, em Fortaleza, capital do Ceará, com a fotografia registrando a terra de cima, até chegar ao sertão, depois à igreja católica e depois ao tarô de dois homens negros. São sequências de apresentações que identifica o Brasil e suas características, entre o urbano e o rural, entre o presente e o passado, entre o sagrado e o profano.

Cria-se um registro realista e o fantasioso, e de um conflito de classes, tudo ao mesmo tempo. A grande qualidade dessa obra é conseguir reunir tantos conflitos orgânicos, além da dialética do retrato do passado com o presente do espectador. É um cinema complexo, mas com ações teatrais e representações simples de contrastes, cores e luzes de uma pintura popular. A história do filme conta a mística do Sertão dos Inhamuns, sincrética com Òṣùpá, orixá da fertilidade do Candomblé, com a espiritualidade cigana. A partir de um abuso sexual escravista no passado, de um senhor de escravos chamado Pedro Cambará contra uma escravizada nasce, na lua cheia, uma menina, que se chamará Lua. Ela cresce, e seu maior dilema é se provar para seu pai como pode ser o filho homem que ele tanto desejava, mesmo sendo negra e mulher.

Lua Cambará (Dira Paes), então, reúne todos esses contrastes de uma sociedade racista, machista e imperialista, ao mesmo tempo muito miscigenada e religiosa. Essa história com fotografia feita por Antônio Luiz Mendes abraça um tom iconográfico histórico de pinturas realistas do século XIX, e a teatralidade de um cordel na interpretação dos atores, e o tema religioso dá tons poéticos à dureza da luta de classes mais evidente. Por isso soa como um Cinema Novo do Cinema de Retomada. Não é a ironia cômica e dramática de Carlota Joaquina, nem a Cosmética da Fome de Cidade de Deus, ou nem mesmo um road movie memorialístico de Central do Brasil.

Mas diferente de Glauber e companhia, Rosemberg busca um cinema clássico, câmera mais estática e uma menor autoconsciência política, e até mesmo materialista dos temas. Mesmo que haja uma contextualização estudiosa na representação dos ciganos, dos escravizados, dos judeus, franceses, e toda pluralidade no sertão cearense, a espiritualidade é que comanda os pontos mais dramáticos. Lua Cambará, a protagonista, é tanto efeito da miscigenação dolorosa entre o homem branco e a mulher negra, nada democrática, como também dos batismos religiosos, que amaldiçoam e moralizam o desejo pelo poder colonizador do homem branco.

O grande drama do filme é como as forças espirituais avisam para desastres, e como a escolha identitária de Lua, tentando ser um homem, como a mulher senhora de escravos, cavaleira medieval do sertão, perpetua a violência para sobreviver como negra dona de posses. Um dos pontos mais altos de melodrama do filme são tanto o conflito corporal, que Lua tem por ser mulher, ao lidar com homens, quanto quando adolescente não poder representar um anjo numa festa católica por ser negra. Isso descreve o Sertão dos Inhamuns, e narra o passado dramatizado, como algo sem fuga, preso. Daí um drama mais contido se justifica.

Entretanto, Rosemberg, também faz uma decupagem sonolenta de organizar tantos conflitos já visuais. Não consegue tanto dinamizar sua obra como pretende, sem muitas rusgas que alimentem o melodrama, ou um efeito emocional mais evidente – como acontece na câmera lenta que Lua enfrenta seu primo branco. Ele até consegue propor bons embates de cavalos, violências e cenas de sexo sem ser explícito. Mas a jornada trágica da protagonista se torna muito mais uma pintura técnica da fotografia, e uma interpretação teatral disciplinada, do que a união da pintura e teatro para um cinema emocional que atravesse o espectador.

Ao final, Rosemberg acaba não conseguindo dar síntese para algo além da dialética histórica que ele ouviu na infância sobre a Lua. A história oral, também foi escrita por Ronaldo Correia de Brito, que em 1977, colocou no cinema esse mesmo conto da Lua Cambará, muito inspirado no Movimento Armorial de Suassuna. Era uma arte mais popular, que podia expandir as histórias nordestinas. Rosemberg não vai para a Idade Média misturada com traços primários do sertão, ou do indígena, ou até mesmo das pinturas rupestres, como Suassuna propôs.

O diretor cearense, no contexto de Cinema de Retomada, se satisfaz no filme cíclico, que se finaliza nos personagens do helicóptero, que olham ao longe uma caminhada santa de negros, uma rede, pós-profanidade nas terras dos Inhamuns. Não há a pessoalidade que Glauber trazia, até mesmo com o personagem intelectual de classe média, central em seus filmes. Infelizmente, apesar da qualidade visual em narrar, e conceituar uma obra intelectualmente relevante para o Ceará, e bem diferente no contexto do cinema brasileiro da época, finaliza-se impessoal. Fica realmente nas escadarias do palácio, que o próprio filme usa como referência da queda narrativa da personagem.

Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio – Brasil, 2002
Direção: Rosemberg Cariry
Roteiro: Rosemberg Cariry
Elenco: Dira Paes, Chico Díaz, Nelson Xavier, W.J. Solha, Ceronha Pontes, Claudio Jaborandy, Bárbara Cariry, Joca Andrade, Muriel Racine
Duração: 88 minutos

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais