Home FilmesCríticas Crítica | Mogli: O Menino Lobo (2016)

Crítica | Mogli: O Menino Lobo (2016)

por Matheus Fragata
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estrelas 3,5

A Disney, sem a menor sombra da dúvida, é o estúdio mais arraigado dentro de sua estrutura inabalável do studio system desse novo século. A razão é simples, basta observar o calendário de lançamentos já anunciados até 2019 – uma lista, aliás, que tem potencial de expansão. Só nesse ano, temos lançamentos em quase todos os meses. Seu modelo de negócios raramente foi ameaçado ao longo das décadas, mas agora, nesses anos 2010, o estúdio ri à toa. Os filmes de super-herói modelaram a tendência para o modelo de negócios com margem de lucro de baixo risco. A Disney entende disso como ninguém com suas adaptações Marvel. Entretanto, o estúdio não se limitou a isso. A companhia é megalomaníaca e voraz: expande em diversas áreas.

Além de seus super-heróis, temos suas tradicionais animações e também de trabalhos, agora em frequência industrial, dos filmes Pixar. Não só isso, o modelo de negócios, esse studio system disfarçado, exige os famigerados season movies, sejam eles de Verão ou Inverno. Nessa leva já vimos diversas obras de recepção mista como John Carter, Tomorrowland, Tron Legacy, Príncipe da Pérsia, O Cavaleiro Solitário, Piratas do Caribe, Oz: Mágico e Poderoso ou até mesmo Horas Decisivas. Dentro desse segmento, entram os filmes de releitura de animações clássicas, um movimento iniciado pela Disney e que acabou guiando esse mercado também explorado pela Universal Pictures.

Esse “revisionismo” de suas obras clássicas, seja contos de fadas ou não, é algo próprio dessa década. Seis anos depois, é possível declarar que o longa responsável por engrenar essa fatia de mercado foi o remake de Alice no País das Maravilhas. Com o bilhão da bilheteria gerado pelo sucesso do filme de Tim Burton, os empresários da Disney notaram que a ideia deu certo. O público consumiu e o filme de sucesso virou fenômeno: estava na boca do povo. A construção dessa rede de segurança orçamentária levou tempo. O dinheiro da renda vinda da Marvel permitiu transformar o fenômeno em tendência. Eis que em 2014 surge Malévola, releitura de A Bela Adormecida – além de ser outro longa que chegou muito perto de atingir o bilhão.

O segundo acerto consolidou de vez e dissipou todas as dúvidas que a Disney poderia ter. Pouco tempo depois, uma compilação surge com Caminhos da Floresta. Em 2015, também gerando renda assustadora, Cinderela chega aos cinemas. É exatamente nessa linha que chega esse novo Mogli, porém, contando com o enorme diferencial do espetáculo visual que essa história comporta.

Nessa versão, o roteirista Justin Marks trabalha um pouco mais inspirado na obra clássica de Rudyard Kipling, mas mantém, em boa parte, a estrutura feita por Walt Disney no filme de 1967. Um novo filme para novos tempos que clamam por ação, porém mantendo a essência da história com algumas alterações. Marks pretende, de início, elaborar um estudo de personagem mais aprofundado para Mogli que nunca foi desenvolvido com muito peso dramático em outras obras cinematográficas do estúdio.

Mogli é encontrado por Baguera, uma pantera negra. Acometido de simpatia pela criança, ele o leva até uma alcateia de lobos onde passa a ser criado por Raksha, uma das lobas dominantes. Aceito como um igual entre os animais da selva, Mogli vê sua vida mudar totalmente após uma longa estiagem. Com apenas uma única fonte de água na selva, presas e predadores são forçados a declamarem trégua para que todos possam beber água em paz. Porém, Shere Khan, um tigre-de-bengala, o animal mais cruel, perverso e assassino da selva confronta o jovem humano. Por conta de um trauma do passado, Khan detesta humanos e não admite a permanência de Mogli na selva. Sem saída e jurado de morte, o garoto parte em uma jornada fantástica com Baguera na tentativa de chegar na vila dos homens.

Bebendo muito da fonte vinda do filme original, Marks consegue criar elementos interessantes, investir onde era preciso mais dedicação e elaborar releituras de personagens. Marks acerta em explorar mais a alcateia que criou Mogli. Apresenta alguma boa relação do menino lobo com sua mãe e seus irmãos filhotes sugerindo até mesmo um vínculo mais profundo com um deles, um cerne que logo é deixado de lado. Na verdade, essa introdução serve apenas para mostrar unidade dentro da alcateia, sua hierarquia e suas leis.

Em pouco tempo, o roteirista já mostra qual será o conflito principal para Mogli. A “crise de espécie” que o garoto tinha na animação é descartada para apresentar um desenvolvimento da descoberta e aceitação de Mogli como Homem. Isso se dá pelo uso de instrumentos, algo que nenhum dos animais sabe manipular nesse universo, já deixando clara a distinção entre ele e os bichos. Entretanto, a alcateia não admite que a natureza humana – representada pelos instrumentos, do garoto desperte. É um conflito muito interessante que é satisfatoriamente desenvolvido ao longo do filme com a participação de Balu ser vital para a evolução dele nesse sentido.

Ao contrário do filme original, é Mogli quem recebe mais dedicação no texto – Balu é explorado em menor escopo. Mesmo assim, boa parte dos personagens clássicos tem um propósito narrativo melhor exposto seja com Kaa, Rei Louie e Shere Khan. Porém, graças a isso, paradoxalmente, o protagonista se comporta como uma bolinha de pinball. É jogado a diversos cantos a cada cena com pouquíssimo poder de escolha como se ele não pensasse muito por si só.

Nisso, entram os equívocos de Marks, tanto na história como na releitura de um personagem muito querido: Balu. Apesar de manter a filosofia de vida despojada do urso, o roteirista altera a essência da relação da amizade com Mogli. Uma das amizades mais puras que o Cinema já nos trouxe é repleta de segundas intenções e manipulação. Obviamente, isso acaba afetando a experiência do espectador que já viu ao filme original. Nisso, complica-se a transformação de Balu em um ser responsável, paternal.  Com Baguera, nada muda, o personagem ainda segue como um exemplo de responsabilidade, mas Marks pouco se importa em agregar um conflito ou mais complexidade à pantera. Os elefantes de Coronel Hathi são imbuídos de significado religioso servindo apenas como muleta de conflito à Mogli, nada de muito especial ou criativo.

Entretanto, novas características foram bem-vindas para Kaa e Rei Louie, ambos funcionam como antagonistas ameaçadores e cheios de malícia. O discurso genocida e desejo em manipular o fogo – elemento, este, que é citado incessantemente durante o longa, de Louie é intocado, mas muito melhor argumentado, além de receber um tratamento muito interessante de máfia italiana misturada com um déspota repleto de tesouros inúteis.

Esse cuidado com os personagens também atinge Shere Khan que absolutamente rouba a cena a cada sequência dedicada a ele. Um backstory é criado, sua motivação é mais genuína criando um vínculo mais visceral com Mogli, seu ódio, mais evidente. Uma pena que as escolhas de Marks para desenvolver a caçada à Mogli tomem rumos inesperados e incoerentes com o discurso do vilão que faz uma aposta muito alta para cumprir seu objetivo. Seus diálogos são bem construídos, em particular, ainda que um deles aposte já na velha metáfora cliché sobre o ninho dos cucos. Já o desfecho do filme também peca por destruir parte do trabalho do protagonista, além do já tradicional embate final em cliffhanger assim como com Mulan ou Tarzan.

A proposta de Jon Favreau é audaciosa: adaptar uma fábula repleta de animais fantásticos em live action. Porém, esse sonho torna-se realidade graça ao poderio monstruoso da tecnologia de computação gráfica que diversas companhias apresentaram em comunhão com a Disney. Em técnica, o filme é estupendo, praticamente impecável.

Em grande parte, o longa é construído via computação gráfica – desde os modelos para os animais, da vegetação, geografia, efeitos climáticos como vento e chuva até boa parte da iluminação. Nisso o cinematografista Bill Pope erra pouco apostando no tratamento convencional de luz suave e delicada para iluminar o único ator presente em carne e osso: Neel Sethi. Além disso, há espaço para a luz dura retratando o sol intenso que castiga a selva em algumas cenas. Pope e o departamento de VFX apenas erram ao falhar na simulação da projeção das sombras de árvores virtuais quando Sethi caminha embaixo de suas copas.

É difícil notar isso, pois Favreau se inspira bastante nos enquadramentos de Reitherman na animação de 1967. Ou seja, seus planos são sempre bastante abertos que além de funcionarem como objeto para contemplação, auxiliam na liberdade da construção dos efeitos e na atuação do pouco carismático ator protagonista graças a quantidade bem limitada de closes.

Sethi falha bastante em expressões faciais e com suas interações com os outros bichos criados virtualmente –algo que acredito ser realmente muito difícil, ainda mais para um ator estreante. Porém sua similaridade física com o personagem é notável, além de Favreau ter dado grande orientação visando aproveitar ao máximo das expressões corporais do garoto que remetem às animações do clássico até certo ponto.

Favreau realmente demonstrou um grande amadurecimento criativo em Mogli. Ele trabalha a ação de forma realista em grande maioria, não tem medo de caminhar sua atmosfera para tons sombrios, colocar elementos pesados nas entrelinhas, além de tratar, esteticamente, Mogli como um verdadeiro menino da selva. Ele é marcado por arranhões, sujeira, cortes, cicatrizes e até mesmo sangra em algumas cenas. Favreau sabe construir bem a tensão ao colocar o garoto em risco em diversos momentos o que torna todo esse universo mais crível.

Além disso há toda a criação visual de extrema exuberância e cuidado com detalhes. Todo o cenário é vivo, pulsante, vibrante, repleto de cores. Sua decupagem e movimentação de câmera aproveitam isso tudo. Acaba sendo muito mais plural que As Aventuras de Pi, outro filme de proposta similar, graças as constantes trocas de cenários. É fácil se encantar pela imponência da floresta, do templo abandonado de Rei Louie ou da selva sombria de Kaa. Há até mesmo um belíssimo time lapse que remete às construções visuais de Darren Aronofsky em Noé. Fora isso, seu tratamento para com Mogli é muito mais direcionado para a interpretação de Rousseau do “bom selvagem”.

Já sobre os animais, não há o que dizer. Toda a modelagem, textura e animação tornam as feras críveis e cheias de vida, cada uma com suas particularidades. Porém, acredito que justamente com Balu, a proposta fotorrealista acabou prejudicando muito a variedade de suas expressões. Se o espectador não dedicar boa parcela, não perceberá quase alguma mudança notória em sua face.

Os poucos deslizes que Favreau comete são graves ao tentar prestar homenagens ao filme original. Isso se dá na inclusão das duas únicas canções que retornam: Bare Necessities e I Wanna Be Like You. O encaixe não funciona de forma alguma, além de serem sequências muito limitadas, nada criativas, por conta até da fisiologia dos personagens, agora “realistas”. Acaba deixando toda a atmosfera estranha e fora de lugar. Era melhor deixar as canções restritas aos créditos finais que prestam uma homenagem mais inteligente à animação. Aliás, Favreau e John Debney, compositor da trilha musical, acertam ao puxar um pouco dos arranjos clássicos de George Bruns – ainda que os novos temas sejam muito mais voltados para o típico blockbuster contemporâneo.

O outro tropeço do diretor é uma falha de construção de montagem, próxima ao final, que praticamente arruína a geografia da selva e a distância estabelecida ao longo do filme com para resolver rapidamente o conflito Shere Khan vs. Mogli.

Entretanto, a pior característica é restrita à nossa versão nacional da película: a dublagem brasileira. Ao escolher atores famosos ante os profissionais que redublaram há pouco tempo a animação original, a Disney acabou prejudicando muito dois dos personagens: Balu e Mogli. Já com uma performance fraca, por vezes caricata, de Neel Sethi, o garoto consegue sair prejudicado pelo talento nacional de sua voz muito alheia ao drama que se passa em tela, artificial ao extremo da performance de Arthur Valadares. A dublagem de Mogli só não é a pior do filme por conta de Marcos Palmeira que passa a impressão de um Balu lesado por conta de sua fala arrastada, monótona que não colore ao menos uma mísera variação relevante em seus tons de voz. É difícil ter empatia por um urso tão alheio de tudo ao seu redor.

Ao menos o restante do elenco nacional não é tão ruim limitando-se na maioria com trabalhos medíocres. Quem se destaca é Julia Lemmertz e Thiago Lacerda dublando Raksha e Shere Khan, respectivamente. Como não vi a versão legendada, não sou capaz de oferecer uma análise competente.

Este novo Mogli: O Menino Lobo é um marco para o nosso cinema de hoje, pois deixa bem claro para onde a indústria caminha. Filmes repletos de efeitos visuais estonteantes que chegam a limar a presença física do ator em set e de adereços físicos de design de produção. Explorando coisas novas, trazendo um conflito diferente para o protagonista com bom espirito de aventura sem medo de exibir cenas mais sombrias, além da inevitável mensagem ambientalista, o remake peca pouco com erros triviais e por preguiça de investir mais em seus personagens coadjuvantes, principalmente Baguera. O grande espetáculo aguarda uma nova geração que provavelmente sairá encantada com essa história atemporal de Kipling e Disney, porém creio que não substituirá tão facilmente a memória afetiva daqueles que cresceram com o belíssimo clássico de 1967.

Mogli: O Menino Lobo (The Jungle Book, EUA, 2016)
Direção: Jon Favreau
Roteiro: Justin Marks e Rudyard Kipling
Elenco e vozes originais: Neel Sethi, Ben Kingsley, Bill Murray, Idris Elba, Lupita Nyong’o, Scarlett Johansson, Giancarlo Esposito, Christopher Walken
Duração: 105 minutos.

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