Noel Rosa, branco, de Vila Isabel, classe média, estudante de medicina, que adentra o mundo do samba, entre a malandragem e a pilantragem. Uma cinebiografia que tenta sambar entre esses dois temas, para comentar algo sobre o Brasil do Rio de Janeiro, enquanto o protagonista vive esse dilema no romance. Incluído nisso, há um curta-metragem interno de estudo de personagem, fazendo uma obra histórica bagunçada nas suas narrativas paralelas, mas com uma busca estética honesta do cinema nacional de retomada.
O diretor Ricardo van Steen, que demorou quase dez anos para produzir o filme, depois do seu curta Com Que Roupa? sobre o mesmo Noel Rosa, é um esteta, mais que um diretor. Para contar a história do sambista da Velha República, que conheceu sambistas em jogos de aposta e depois ficou famoso por fazer o hit do carnaval, o diretor é apegado a planos cinematográficos que ousam o olhar do espectador, enquanto deixa vislumbres da desigualdade e da união social rodeada pelo samba nos bares encenados.
Muito do cinema de retomada se caracterizou assim, com os planos naturalistas e gerais de Central do Brasil, a comédia histórica de Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, ou o tom documental realista de Cidade de Deus. Ricardo não foge disso, usando ângulos mais incisivos com câmeras baixas, gravando diálogos com economia de cenas e contracenas, e gravando o protagonista em espaços vazios, e até embaçando a tela em ângulos subjetivos do protagonista. No entanto, o percurso entre malandragem e pilantragem são temas ditos, musicalizados, mas não dizem tanto com a imagem. Tem uma certa naturalidade que as músicas são postas, e até a montagem da criação do samba Com Que Roupa? é estimulante, mas não passa disso.
Nesse contexto que entra o curta-metragem interno da obra. A história de Noel Rosa (interpretado muito bem por Rafael Raposo) é contada realmente com uma adaptação da biografia de João Máximo e Carlos Didier, e por isso busca pegar o máximo de informações possíveis do livro que repercutam dramas impactantes, mas que torna a narrativa principal difusa sobre os temas falados pelos personagens, e que são melhor idealizados nos romances de Noel.
Assim, o cenário é desenhado. Camila Pitanga, interpretando a prostituta Ceci, é a antítese da pilantragem. Ela trabalha num cabaré, mas acaba escolhendo de fato um homem da boemia, em meio a tantos. Já a esposa Lindaura, de Lidiane Borges, é o símbolo de como a malandragem se torna pilantragem, pois Noel é obrigado a casar por ter violado a jovem. Metaforicamente, existe essa dualidade no filme, e nas maneiras que as cenas de sexo são representadas, o diretor incorpora ao menos as diferenças entre a esposa obrigação e a musa inspiração.
Porém, o resto se torna um filme bem filmado, sem substância que una uma obra, que a cada instante tem um samba, tem uma referência histórica, sambando, mas não integrando à roda. Mesmo que as músicas tenham significados, ainda mais para os dramas e retrato histórico desigual entre os bairros Tijuca e Vila Isabel na cidade do Rio de Janeiro, a mixagem de som não contribui, ou a edição de som não foi bem feita para captar bem a diferença entre diálogos e músicas. Acaba que esse provável problema técnico de equilíbrio sonoro torne as músicas meras passagens de tempo em alguns momentos, mesmo que sejam parte do universo de Noel e história do ritmo musical tão reconhecido no Brasil.
Por fim, o subtítulo até é bem representado, em que Noel é ilustrado como um famoso poeta da Vila Isabel. No entanto, todo o drama masculino com a prostituta, as viradas dramáticas envolvendo suicídio do pai e mortes de tuberculose, se tornam elementos que apenas impulsionam a narrativa. A poesia exposta no filme, mesmo que tenha sua melancolia em músicas de desamor amoroso, que o espectador possa se projetar, é o caráter básico de uma cinebiografia, não acompanha o diferencial visual do diretor, ou sua capacidade de paralelamente propor um estudo histórico do samba.
Para um personagem histórico, que diz tanto sobre o período pré-Vargas, pré-Crise de 1929, e sobre a mudança do samba da rua para os salões, a interpretação de Ricardo Van Steen se encapsula, como um curta-metragem. Por um lado isso é bom, singulariza o trabalho, por outro lado diminui impactos drmáticos. Para uma história que é paralela ao desenvolvimento da música no morro do Salgueiro, e até mesmo da ascensão do Cartola (que aparece no filme interpretado por Jonathan Haagensen), a interpretação do diretor se tornou dividida, não dualista, ou ambígua de qualidade.
Noel: Poeta da Vila – Brasil, 2006
Direção: Ricardo Van Steen
Roteiro: Pedro Vicente, baseado no livro Noel Rosa – Uma Biografia de João Máximo e Carlos Didier
Elenco: Rafael Raposo, Camila Pitanga, Lidiane Borges, Laura Lustosa, Rui Resende, Paulo César Peréio, Flavio Bauraqui, Jonathan Haagensen, Carol Bezerra, Supla, Fabrizio Fasano
Duração: 99 min.