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Crítica | O Dia da Posse

por Michel Gutwilen
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Ao perceber que O Dia da Posse, filme que abre o Festival Olhar de Cinema 2021, se tratava de um filme pandêmico, peguei-me pensando sobre um aspecto que tem menos a ver com o filme em si e mais com a relação entre Cinema e mundo, que andam em ritmos diferentes. Afinal, em 2020, quando o Festival Olhar de Cinema teve sua edição online, no auge da pandemia, as obras escolhidas para sua seleção eram em sua maioria feitas antes de seu início, ainda que algumas evocassem, indiretamente, sentimentos de isolamento, mais pela recepção espectatorial e menos suas intenções. É, na verdade, perto de 2022, quando o mundo caminha para uma volta a normalidade, que chegarão com força os filmes verdadeiramente pandêmicos, gerados e pensados dentro desse contexto mundial, uma vez que existe um gap temporal entre a gestação (a realização do filme) e o parto (sua entrada em festivais e no circuito) dessas ideias. 

Assim, esses filmes, que foram pensados para serem espelhos de nosso tempo presente, na verdade, já nascerão “atrasados”, mais como um retrato do passado? Deste desencontro temporal, nasce uma dialética: o olhar do realizador feito na pandemia e o olhar do espectador “pós”-pandemia? Como reagirá o espectador diante dessa provável enxurrada de obras temáticas que virão ao seu encontro quando o mundo volta ao normal? Será que o timing foi perdido ou essas obras sobreviverão sem o “calor do momento”? Estarão as pessoas cansadas de olhar em looping para a pandemia? Ansiarão olhar para frente e menos para o passado? Terão curiosidade de ver o que foi feito criativamente em termos de Cinema por conta das limitações impostas a estes realizadores? Só o tempo dirá, mas, enquanto isso, vamos para O Dia da Posse.

Quando começa, a câmera direciona seu olhar para o mundo lá fora, que é visto como uma escuridão ruidosa, e depois volta para o interior do apartamento, mirando um rosto humano, mas que está tão aproximado e fora de foco que também, paradoxalmente, parece tão abstrato e distante quanto o mundo lá fora. É nesta dialética entre o dentro e o fora que se inicia O Dia da Posse e marca toda a narrativa do diretor Allan Ribeiro. Entre o abstrato e o humano, entre um anseio de se movimentar e achar novos olhares dentro dos limites, nasce um filme.

Primordialmente, as imagens de Allan Ribeiro estão sempre buscando um escape da realidade e da rotina de isolamento social no apartamento em que está confinado. Para isso, seu olhar da câmera está sempre se submetendo a constantes reinvenções e improvisações. Assim, ele olha para a vista que as janelas oferecem (tanto para a natureza quanto para os vizinhos), mas uma hora este recurso chega ao seu limite, como se não houvesse mais o que extrair daquela vista, então é preciso achar uma nova rota de fuga. Como alternativa, também surge a tentativa de fugir pelo digital, com esta curiosa inserção da câmera filmando as chamadas de vídeo do diretor com seus familiares pelo celular, assim como a tela do computador, ao mexer no Facebook ou vendo um vídeo no Youtube. Já em outro momento, a câmera assume o ponto-de-vista do olho mágico do apartamento. 

É neste ciclo de possibilidades dos diferentes tipos de olhar para fora que vão se sucedendo os planos de Ribeiro, como se O Dia da Posse se submetesse conscientemente a um jogo que está fadado a fracassar. Ora, as imagens oferecidas aqui são um paradoxo frustrante: ao mesmo tempo que elas indicam existir um mundo lá fora, “do outro lado”, elas também são a própria a impossibilidade de se chegar até ele. O recorte da janela, a porta, os limites da tela do celular, tudo se torna um objeto de dupla função: é tanto um recorte de um plano quanto uma barreira invisível. Ou seja, quanto mais a câmera busca a fuga, mais ela evidencia a prisão. Neste sentido, todos os planos na praia parecem meros sonhos perdidos e utópicos que não se encaixam dentro desses limites.

Só que não é apenas para fora que o diretor Allan Ribeiro olha, mas a fuga também é buscada a partir de dentro, a partir da interação humana, sendo aqui que o filme se torna mais complexo ainda. Aliás, de início, me questionei se os interesses em falar sobre pandemia não ofuscariam o olhar curioso para o jovem Brendo Washington. Contudo, a própria progressão narrativa foi respondendo este princípio de questionamento que surgiu, mostrando sua incongruência. Na verdade, filmar o carismático Brendo faz tão parte de uma tentativa de reinvenção do olhar do que apontar a câmera para a janela. Neste sentido, Ribeiro abraça e entra de cabeça na fabulação do jovem estudante, que cada vez mais se transforma em um personagem consciente de que está sendo filmado, como ele mesmo afirma, ao dizer que “diante de uma câmera ninguém costuma ser o que é de fato”. 

Logo, existe um verdadeiro encontro entre as vontades de Brendo e Allan durante O Dia da Posse. Evidentemente, o jovem faz do filme um veículo para encenar seus sonhos de infância, entendendo o potencial do Cinema, ao mesmo tempo que ganha visibilidade com isso. Se Brendo está mirando no futuro ao encenar seu “faz de conta” como um escolhido do o Big Brother Brasil ou um político, ele na verdade é, hoje, uma verdadeira star de Cinema. Ou seja, enquanto a câmera fantasia uma farsa com olhos para o futuro, ela também assume a dupla função de ser imagem real que registra o presente. 

Por outro lado, Allan descobre que é no jovem Brendo que existe a verdadeira fuga da prisão que ele tanto busca ao longo das imagens de O Dia da Posse. Não só ele é um perfeito escape para reinventar o olhar literal do filme, porque o diretor está sempre arranjando diferentes formas de filmar seu corpo, mas também em como ele percebe que o otimismo inocente da juventude e a sua capacidade de olhar para frente, sonhando acordado, são fantasias mais potentes do que qualquer imagem literal para fora do apartamento. No fim, o que faz Ribeiro não é apenas filmar o presente da pandemia, mas também permite um olhar generoso e otimista para o futuro visto neste jovem que ele pode viver um pouco.

O Dia da Posse — Brasil, 2021
Direção: Allan Ribeiro
Roteiro: Allan Ribeiro
Atores: Allan Ribeiro, Brendo Washington
Duração: 70 minutos

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