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Crítica | O Quarto de Jack

por Matheus Fragata
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estrelas 4,5

Obs: o trailer do filme revela muita coisa. Caso tenha visto, a leitura é recomendada, pois abordo pontos apresentados pelo trailer que podem ser considerados spoilers.

A alegoria da caverna descrita por Platão no livro A República é uma das melhores lições fornecidas pela filosofia grega. O mito tem uma mensagem tão impactante sobre a percepção humana com o “real” que rapidamente as artes, principalmente o cinema, absorveram a essência da filosofia a apresentando de outras formas. Belíssimas obras foram montadas com base na alegoria do Platão: O Show de Truman, Pacto Sinistro, A Ilha do Medo, Sinedóque, Nova Iorque, Ex Machina, Dente Canino e Matrix, considerado até então o melhor filme a explorar essa filosofia platônica.

Trabalhando também com base em Platão, O Quarto de Jack traz a história de uma mãe e seu filho. Ao contrário do cotidiano normal que deveria contemplar toda vida humana, Jack e Joy vivem confinados em um quarto. Para Jack, o mundo é o quarto, pois ele nunca conheceu o mundo externo. Sua realidade se limita apenas a pia, ao armário, a cama, a geladeira, a televisão e a claraboia que ilumina o diminuto aposento. Quando o garoto finalmente alcança os cinco anos de idade, Joy decide que é hora de escapar do confinamento.

Em uma ocasião pouco comum no cinema, a adaptação de O Quarto de Jack teve a sorte de ser escrita pela mesma autora do material original. Logo, todo o texto consegue ser fiel ao livro – um pouco menos detalhado. A roteirista desenvolve o filme sempre a partir do ponto de vista único de Jack. Seu talento em explorar situações complexas, traumas e temas sombrios transmitidos com tanta leveza é algo absolutamente exemplar. Ao contrário de filmes como Indomável Sonhadora que romantizam a figura do protagonista além da conta, Emma Donoghue faz Jack, de fato, uma criança normal.

O filme é contextualizado diversas vezes através de uma narração over, porém, ela não situa ou beira o didatismo. O uso é diferenciado voltado apenas para mostrar algo similar a um fluxo de consciência do personagem. Não há dúvidas, Jack é um protagonista encantador. Ele soa como uma criança e não como um adulto infantilizado. Jack faz birra, chora, tem momentos de egoísmo, nega a verdade, ou seja, em essência, ele não é perfeito e maravilhoso. Para mim, isso o engrandeceu, pois é fácil romancear demais com papéis infantis transformando esses protagonistas mirins em poços de sabedoria apaixonada e idealista se limitando em serem criaturas insuportáveis.

Todas as raras vezes que ela romantiza Jack, tem propósito. Mostram os sentimentos do garoto em relação ao confinamento que são, em suma, positivos. Jack ama o seu quarto. Porém o brilho narrativo se dá com a exploração muito refinada de seu relacionamento com a mãe. Através desse dinamismo, conhecemos a rotina dos dois, da preocupação dela em criar um ambiente mais favorável ao garoto diante de uma realidade difícil. Nesse trabalho de rotina, Donoghue toma bastante tempo para apresentar o motivo do confinamento. O mistério ronda o início do filme e, obviamente, nos cativa. Isso inclui, até mesmo, algumas ações que os dois fazem que tem pouco sentido no momento, mas que, após a reflexão da revelação do aprisionamento, encaixam com perfeita naturalidade.

Não se engane pelo pôster, O Quarto de Jack trata sobre temas muito complicados e sombrios. Isso se torna claro no segundo ato do longa quando enfim a verdade vem à tona. Descobrimos que Joy fora sequestrada e vive nesse desconforto por anos. Como o filme trabalha somente em cima do ponto de vista de Jack, a roteirista define com sutileza os horrores que Joy é obrigada a viver pelos abusos de Old Nick, o sequestrador. Também, pela mesma razão, ela abre mão da lógica em favor do lirismo. Logo, apesar da representação de Nick ser deveras interessante e complexa, acaba mal aproveitada – isso inclui o desfecho totalmente ilógico do arco da escapatória de Jack do quarto assim como na conclusão preguiçosa do destino do personagem.

Quando enfim ela passa a trabalhar na construção da fuga,  a apresentação se torna mais clara desse sentido filosófico da alegoria da caverna através de diálogos bem firmados com Joy tentando explicar como é o mundo para Jack que insiste na alienação. Isso resulta em um bom drama. Depois da fuga do garoto, fica claro que a roteirista aborda o seu texto entre a primeira parte centrada no confinamento e na segunda parte que explora o desdobramento de sua fuga, além do primeiro contato de Jack com o mundo.

Nesse segundo momento, o roteiro perde um pouco de sua tremenda força. Donoghue passa a investir nos contrastes entre Jack, encantado com o mundo, e Joy, desiludida com dificuldades em se adaptar. Enquanto um segue para um caminho mais apaixonado, a outra trilha para cantos obscuros e melancólicos. Isso também envolve o teor da memória que ambos têm do quarto onde passaram tantos anos. A interação passa a ser mais plural também, afinal outros personagens entram na história. Sutil como sempre, Donoghue constrói um novo Jack com características muito interessantes também. Propositalmente, Joy perde o brilho de outrora.

A roteirista passa a criar diversos conflitos entre Joy e outros personagens, mas vai abandonando todos progressivamente com pouca ou nenhuma conclusão. O mais absurdo desses casos concentra-se no dilema que o pai de Joy enfrenta com Jack. É algo muito profundo e que certamente renderia um drama incomum e corajoso, porém, ela desiste do conflito fazendo o personagem desaparecer.

Até mesmo durante um momento trivial da narrativa – na verdade o último conflito real e reviravolta impactante do filme, ela retoma o lirismo prejudicando a narrativa tornando o texto muito preguiçoso. A desculpa do longa se passar pelo ponto de vista de Jack permite esse tipo de descuido, mas ainda assim, não deixa de ser algo lamentável, afinal trata-se de um longa muito especial.

Assim como o texto de Donoghue, a direção de Lenny Abrahamson – diretor de Frank, é feita com sutileza. Seu andamento para o filme é praticamente perfeito. O cineasta não toma os holofotes para si, mas sim para o que está gravando. Na primeira parte do filme, Abrahamson, com uma decupagem muito sábia, não torna os enquadramentos do Quarto claustrofóbicos. Ele opta sempre em mostrar partes do aposento, nunca o enquadrando por completo com um mastershot, por exemplo. Isso tem um propósito – não é somente o texto que toma o ponto de vista de Jack para si, a cinematografia também o faz.

Como naquele momento, tudo o que o menino conhece é o quarto, o cineasta e o design de produção tornam o ambiente em algo agradável no limite do possível. Aliás, ele também colabora inserindo com esperteza uma claraboia no aposento auxiliando diretamente a fotografia sempre dessaturada, azulada e fria de Danny Cohen.

A vertente visual de Abrahamson vem diretamente do cenário indie então é inevitável que sua decupagem e mise en scene sejam típicas do nicho. Logo, temos diversas cenas elaboradas com poucos planos, pois o cineasta prefere apostar na mobilidade irrestrita e instável da câmera. Às vezes, trabalha com uma variação um tanto preguiçosa dos clássicos jump cuts. O diretor sabe bem o que faz, estabelece a atmosfera, por vezes monótona, com maestria com algumas sequências em montagem para exibir a rotina de mãe e filho dentro do quarto. Na segunda parte, ainda trabalha com o confinamento, só que este centrado na casa dos avós de Jack. A sua câmera não se torna expansiva mesmo depois da libertação dos dois.

O que mais achei interessante no trabalho de Abrahamson é essa abordagem do ponto de vista do garoto. É algo muito bem construído. Raramente ele abandona a sutileza dessa assinatura, mas quando o faz, é algo que contribui para a narrativa a fim de ilustrar o sentimento do personagem. Nisso, ele constrói a cena que julgo ser uma das mais poderosas que eu já tenha visto em minha vida – algo no nível da antológica sequência quando Forrest corre pela primeira vez se liberando das parafernalhas que lhes garantiam a sustentação.

Trata-se, obviamente, quando Jack consegue fugir do quarto. Ali, o diretor mostra um mundo borrado e desfocado em pequenos vislumbres subjetivos. Jack não compreende nada daquilo a ponto de não enxergar.  Ainda com base nisso, ele apresenta outra grande sacada: a dilatação temporal. As cenas que decorrem desse pequeno arco da libertação do menino são extremamente angustiantes, pois elas são lentas e torturantes – ainda que tenham sentido tao belo e próprio. É um trabalho muito perspicaz de direção. Se tirasse somente esse trecho do filme lhe transformando em curta, eu não hesitaria em confiar cinco estrelas.

Ao fim, no que tange à imagem, Abrahamson nos apresenta pela primeira vez o verdadeiro tamanho do quarto com um sutil mastershot. O diretor também merece seus louros pelo magnifico trabalho com o elenco. Se uma das coisas que aprendi de fato na faculdade foi evitar trabalhar com crianças pela dificuldade exemplar em orientá-las, além de toda a burocracia para fazer a magia acontecer. Porém, o cinema de Abrahamson tira o melhor possível de Jacob Trembley, o garotinho que interpreta o pequeno Jack.

Seu trabalho é ímpar a ponto de até eclipsar a performance melancólica e triste de Brie Larson. O moleque acerta em tudo. Pega para si a realidade do personagem de modo assustador. Com Trembley, é fácil acreditar que Jack realmente nunca tenha visto o mundo antes pelos olhares assustados e acuados do ator. Há pontuações muito nítida em sua performance. No começo, ele apresenta a figura encantadora do menino inabalável e apaixonado pela vida mesmo que esta seja um tanto deprimente. Ele ama o Quarto. Porém, assim que escapa e passa a se recuperar do trauma oriundo do choque de realidades, Trembley desenvolve a mistura perfeita entre medo, aversão e fascinação por tudo aquilo que o cerca. Na última peça do longa, há um regresso a sua versão encantadora do primeiro momento, mas com diferenças muito sutis. É e não é o mesmo personagem, pois certa maturidade foi adquirida até o momento.

Lhes confesso, o Oscar deu uma baita colher de chá para Leonardo DiCaprio e seu Hugh Glass, pois se Trembley fosse indicado ao prêmio de Melhor Ator, o sonho de DiCaprio seria adiado mais uma vez. Uma esnobada cruel da Academia. Porém, há o mérito de terem reconhecido a performance muito boa de Brie Larson que provavelmente ganhará sua primeira estatueta. É um trabalho merecido, mas é uma pena que o longa não explore diversas facetas de Joy. Larson trabalha com variações de olhares cansados e tristes, além de ser igualmente capaz de tornar a dor de sua personagem em algo tão palpável.

O Quarto de Jack foi o filme que, disparadamente, mais me agradou nessa corrida de Melhor Filme do Oscar de 2016. O trabalho de mestre está em absolutamente todas as áreas desse longa. A direção é impecável com sua sensibilidade em deixar tantos horrores nas entrelinhas de uma grandiosa história de amor. O roteiro apresenta pontos fantásticos com a alegoria da caverna, além de ser essa explosão intensa de emoções apresentadas em diversas cenas. Apenas peca em desistir de focar conflitos tão importantes oferecendo somente um desfecho satisfatório. Até mesmo a trilha musical Stephen Rennicks nos oferece temas absolutamente memoráveis chegando a elevar cenas para um estado de pura arte. Prepare-se para a experiência emocional que este filme é.

É um longa que acerta muito em nos deixar virar parte de tudo aquilo em vez de apostar no convencional centrando a experiência apenas na observação da desgraça alheia, afinal não seria nada condizente com a mensagem do filme: o amor incondicional, altruísta, pleno, imortal e infinito.

O Quarto de Jack (Room, Irlanda, Canadá, 2015)
Direção: Lenny Abrahamson
Roteiro: Emma Donoghue
Elenco: Brie Larson, Jacob Tremblay, Sean Bridgers, Wendy Crewson, Joan Allen, William H. Macy, Tom McCamus
Duração: 118 minutos

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