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Crítica | Obelix & Companhia (Asterix)

por Ritter Fan
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Acho muito engraçado quando volta e meio leio sobre as pessoas reclamando do consumismo exacerbado, da aquisição de objetos e serviços claramente supérfluos, normalmente com o objetivo de se mostrar, de ratificar artificialmente um status imaginário. E isso em todas as classes sociais, que fique bem claro. São pessoas que reclamam disso digitando nos telefones mais caros possíveis ou em redes sociais acessadas a partir de computadores do último tipo, enquanto comem “brigadeiro gourmet” e pesquisam online o que mais pode ser comprado, colocando a vontade de comprar à frente da necessidade de comprar. E o melhor é achar que isso é algo característico da sociedade atual, altamente conectada e com uma gigantesca oferta de produtos na ponta de dedos frenéticos e eufóricos com a perspectiva de se clicar o botão “comprar” nos mais variados sites.

Essa “novidade” da era digital, porém, não poderia ser mais antiga. Desde que o Homem passou a viver em sociedade sedentária e passou a produzir mais do que para consumo próprio, o mercado foi criado e o mercado, com sua evolução – para o mal ou para o bem – é algo manipulável, algo extremamente volátil e que se refestela com a nossa fraqueza, nossa incapacidade de resistir à tentação, por assim dizer. É sobre isso que René Goscinny e Albert Uderzo falam sensacionalmente em Obelix & Companhia (também grafado no Brasil como Obelix e Compahia), 23º álbum da célebre séries em quadrinhos sobre os irredutíveis gauleses e último a ser publicado com Goscinny ainda em vida, já que o grande roteirista faleceria no ano seguinte, 1977, por problemas cardíacos, com apenas 51 anos.

A crítica sócio-econômica do álbum é ferina e não perdoa ninguém, inclusive satirizando diretamente ninguém menos do que Jacques Chirac, então Primeiro Ministro francês – e que viria a tornar-se presidente do país em 1995 – cujo semblante é brilhantemente utilizado por Uderzo para criar Regius Vellhacus, um dos conselheiros de Júlio César que sugere um plano de fundo econômico para acabar com os irredutíveis gauleses depois que o ditador reclama que Obelix, sozinho, acabara com toda uma nova guarnição de legionários romanos que foram render a que estava em Babaorum, tudo como um presente de aniversário dado ao volumoso gaulês por Asterix e demais aldeões (a trama, em linhas gerais, lembra a de A Cizânia). O personagem, estabelecido como uma caricatura de um énarque, ou seja, de um economista/administrador egresso da Escola Nacional de Administração (ENA), que teve e ainda tem grande influência na administração pública francesa e que, claro, é objeto das mais severas críticas, sugere usar as regras de mercado para criar demanda, monetizando objetos inúteis e estabelecendo um círculo vicioso que gera inveja, concorrência e, em última análise, destruição. Ou seja, na largada, a dupla não perdoa ninguém de consumidores, a estudiosos e políticos, algo que fica ainda mais evidente quando Velhacus usa os próprios conselheiros de César – obesos, preguiçosos, lentos e incapazes – como prova de que seu plano poderia dar certo.

Mas se o leitor souber olhar para além da crítica, notará que Goscinny oferece uma verdadeira aula de macroeconomia casada com marketing, já que o plano de Velhacus é simplesmente precificar nada menos do que o menir fabricado por Obelix, gerando, a partir daí, toda uma concatenação genial de acontecimentos que leva todos os aldeões – menos Asterix e Panoramix, claro – a fazer parte da cadeia de produção, seja como funcionários da pedreira de Obelix, seja como caçadores de javalis, seja como concorrentes em um mercado que, claro, não demora a ficar saturado. O brilhantismo de se usar um menir é que, na lógica sempre estabelecida por Goscinny e Uderzo desde que criaram Asterix e Obelix, ele não serve para absolutamente nada, a não ser, talvez, uma espécie de adorno de gosto duvidoso (historicamente, o menir – ou perafita – eram utilizados como oferendas a deuses e serviram de base, coma evolução, para os dólmens e para as colunas até hoje utilizadas em arquitetura).

Velhacus, então, não só cria preço para algo sem valor – sim, olhe a seu redor agora e veja quanta coisa sem valor, mas com preço, que está a seu redor -, como aumenta-o constantemente, estabelecendo uma demanda fictícia que força a criação de oferta. E, como isso não bastasse, com apenas publicidade em Roma, ele estabelece o menir como um objeto de cobiça simplesmente pelo status que ele cria na comparação do “eu tenho, você não tem”. Se eu já usei o adjetivo genial antes, me perdoem, mas é que é genial demais – e verdadeiro demais – para eu não tecer todos os elogios possíveis a esse álbum.

E as situações dentro da história em si não são diferentes. As mudanças em Obelix são hilárias e perfeitamente condizentes com as alterações de seu patamar dentro dessa micro-sociedade. Os demais personagens clássicos, Veteranix, Ordenalfabetix e Automatix principalmente – entram na ciranda da concorrência de maneira orgânica e bem trabalhada a partir da quebra da dinâmica normal da aldeia, o que inclui até mesmo o trabalho de alfaiate que a esposa de Veteranix passa a fazer para Obelix. E é claro que o astuto Asterix, já antevendo os desdobramentos do plano romano, serve como lenha na fogueira e precipita os acontecimentos em conluio com Panoramix, só esperando o caos completo instalar-se como mais uma lição para seus amigos.

Obelix & Companhia, portanto, adiciona lições de economia e de marketing às suas críticas sobre o consumismo, tudo dentro de uma panorama histórico-satírico que torna a leitura absolutamente deliciosa do começo ao fim, gerando, também, uma certa vergonha a nós, leitores, por nos identificarmos tão claramente com o que acontece na história (e sim, você se identifica sim com alguma parte dessa ciranda consumista, não adianta fingir que não!). Goscinny e Uderzo, mesmo no final de sua prolífica parceria, mostram que têm o absoluto comando de sua narrativa.

Obelix & Companhia (Obelix et Compagnie, França – 1976)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Dargaud
Editora no Brasil: Editora Record
Páginas: 48

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