Em 2018 e 2019, o documentarista Daniel Raim dirigiu dois curtas sobre o cineasta japonês Yasujiro Ozu para a Criterion. Em Busca de Ozu lida com um momento muito específico na carreira do mestre, em que ele faz a transição do preto e branco para as cores, o que aconteceu com Flor do Equinócio, em 1958. Com Ozu & Noda, como o título deixa evidente, Raim aborda a amizade e prolífica parceria profissional de Ozu com o roteirista Kogo Noda. Mas essas duas obras, agora fica claro, eram apenas preparativos para Os Diários de Ozu, que pode ser chamado como o documentário definitivo sobre a vida e a obra de Ozu cuja estreia ocorreu no Festival de Veneza de 2025 e que merece ser conferido por qualquer um que aprecie o grande diretor nipônico e, também, por quem aprecie documentários, já que o que Raim faz, aqui, é o perfeito equilíbrio entre o homem e suas criações, reiterando aquilo que sabemos, mas que poucas vezes é mostrado com esse tipo de solenidade, ou seja, o quanto a arte é influenciada pela vida.
O ponto de partida de Raim são os diários deixados por Ozu (na verdade uma série de pequenas agendas de bolso que cobre o período de 1933 a 1963), o que ele já havia usado parcialmente nos dois citados curtas, mas que, aqui, ganham destaque absoluto, ainda que não sejam as únicas fontes históricas, já que há muito uso de cartas, fotografias, desenhos e filmagens caseiras do cineasta que ganha voz por meio da narração em primeira pessoa de Koi Ohori. Há uma riqueza de material em Os Diários de Ozu a ponto de ser perceptível que Raim teve que fazer um profundo trabalho de pesquisa e sobretudo curadoria para selecionar aquilo que levaria para seu filme, deixando o espectador salivando por mais, seja na forma audiovisual, seja pela publicação em larga escala (que eu saiba, só existe um compilado, traduzido para o francês, publicado na França e Bélgica) desse material organizado em forma de livro, já que Ozu, diferente de seu conterrâneo Akira Kurosawa (e mesmo assim parcialmente), não nos deixou uma autobiografia.
Em termos formais e estruturais, o documentário segue estritamente uma jornada cronológica sobre Ozu, de seu nascimento a seu falecimento prematuro aos 60 anos, em 1963, sem tentar reinventar a roda ou criar floreios que seriam atípicos ao cineasta biografado. No entanto, o que Raim consegue fazer como poucos documentaristas de artistas fizeram é costurar vida e obra, obra e vida, sem separar uma coisa da outra em blocos. Não há Ozu sem seus filmes e não há filmes de Ozu sem a vida que ele viveu e é fascinante como o documentarista usa cenas de filmes de Ozu para ilustrar momentos chave de sua vida, seja a perda de sua mãe, o relacionamento com seu pai, os efeitos devastadores de seus 22 meses lutando pelo Japão na Segunda Guerra Sino-Japonesa, algo que ganha bom destaque no documentário, e assim por diante. E, em meio a isso, ainda há espaço para que Raim traga alguns cineastas de renome para destrinchar determinados aspectos das obras de Ozu, mas sem inchar o filme com uma infinidade de pessoas falando apenas alguns segundos. Ao contrário, Raim dá tempo aos entrevistados para realmente se aprofundarem e fazerem comentários cuidadosos e esclarecedores.
Com isso, vemos Wim Wenders estudar a influência de Ozu no Ocidente, Kiyoshi Kurosawa fazer um mergulho na forma como ele interpreta ser o efeito da guerra na filmografia do mestre, Luc Dardenne esmiuçando a conexão de Ozu com a vida ao seu redor e Tsai Ming-liang abordando algumas técnicas que se tornaram naturalmente padrões do Cinema moderno. É gratificante ver o espaço que Raim dá a cada um desses grandes nomes, sem a correria usual de documentários que prezam quantidade e não qualidade. Sobra tempo até mesmo para o documentarista trazer pessoas que eu jamais imaginaria ver na tela grande novamente e que realmente acrescentam camadas emocionantes ao filme. Falo especificamente de Isao Shirosawa e de Kyôko Kagawa. Shirosawa, que não seguiu carreira de ator, viveu o insolente e hilário irmão mais novo em Também Somos Felizes, de 1951, e ele conta – com uma memória impressionante – como Ozu tornou-se próximo dele de maneira a extrair naturalidade em seu trabalho a ponto de ele, quando criança, ter considerado o cineasta como um tio ou alguém muito querido. Kagawa, por seu turno, firmou-se como atriz e, no alto de seus 93 anos, fala sobre como ela ficou impressionada com o detalhismo de Ozu ao indicar para ela, durante as filmagens de Era uma Vez em Tóquio, exatamente quantos segundos determinada cena deveria durar e quantas vezes, portanto, ela deveria levantar e abaixar suas mãos.
Os Diários de Ozu talvez não seja um documentário feito para quem desconhece completamente a filmografia do mestre, mas tenho para mim que o conhecimento profundo faz-se desnecessário para a apreciação do que Daniel Raim faz aqui, que é conseguir usar os breves comentários nas centenas de caderninhos de Ozu para descortinar uma vida rica que gerou uma das filmografias mais importantes da História do Cinena e que, tenho certeza, pode servir como porta de entrada para que mais gente mergulhe nas obras do diretor. Finalmente Yasujiro Ozu ganha o tratamento biográfico audiovisual que merece e que, espero, não seja o último.
Os Diários de Ozu (The Ozu Diaries – EUA, 2025)
Direção: Daniel Raim
Roteiro: Daniel Raim
Com: Koi Ohori (narração), Wim Wenders, Kiyoshi Kurosawa, Luc Dardenne, Tsai Ming-liang, Kyôko Kagawa, Akiko Ozu, Mitsuyoshi Fujimori, Kie Nakai, Kazuhiro Odashima, Isao Shirosawa, Michiko Yamanouchi, Shizuo Yamanouchi, Yasujirô Ozu (filmagens de arquivo), Kôgo Noda (filmagens de arquivo)
Duração: 140 min.