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Crítica | Peterloo

por Gabriel Carvalho
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“Tranquilidade.”

Em um dos momentos iniciais de Peterloo, dois personagens se destacam por vestirem casacos vermelhos, mesmo que os seus trajes em si sejam diferentes – as patentes são distintas, porém, a guerra fora a mesma. Um deles, no entanto, é recebido com honrarias, enquanto o outro, vivo após a famigerada Batalha de Waterloo – o confronto que encerrou a Era Napoleônica -, precisa retornar ao seu lar por conta própria, apesar de sujo e cansado. Ao mesmo tempo, o primeiro dentre tantos monólogos da obra antecipa os louros exacerbados que o Duque de Wellington, comandante das tropas vitoriosas do Reino Unido, receberia no pós-guerra. O propósito nesse contraste inicial do longa-metragem do cineasta britânico Mike Leigh é simples: marcar a indiferença dos poderosos no que tange as massas, rebaixadas a uma esfera próxima da escravidão. Logo, a sua condução irá procurar acompanhar os questionamentos dos moradores de Manchester à realidade a que se encontravam submetidos e também registrar o desprezo daqueles que controlavam essa realidade aos que terminavam sendo os únicos realmente transtornados por ela. Enquanto visa diagnosticar tais contradições sociais do passado – e que retornam no presente -, excessivo, porém, acaba sendo o ímpeto do artista em restaurar a imagem de revolta daquela época, que sofre de um dos males contínuos da sociedade e seus pretensos revolucionários: muitas palavras e pouca verdade.

Com o crescimento de um sentimento de descontentamento perante as péssimas condições que os cidadãos possuem para viver, igualmente cresce uma vontade em se rebelar. Dado o retorno de Joseph (David Moorst) à casa, Leigh, que também escreve o roteiro, contextualiza o olhar dos mais pobres em relação aos seus entornos, pois os parentes do personagem participam de encontros contrários ao sistema governamental vigente – eles anseiam por uma reforma parlamentar. Os responsáveis pela retórica de oposição, escutados com atenção pelos membros dessa família que passa, como muitas outras, por uma depressão econômica, são então apresentados pelo longa-metragem, ganhando um protagonismo. Desse modo, o garoto militar rapidamente perde espaço, virando quase parte do cenário, ao passo que conclamações inflamadas e estratégias que visam protestos viram prioridades para o enredo. Cada vez mais próximo de acontecer, o Massacre de Peterloo – a que o nome da obra se refere -, é, portanto, o ápice dessas tensões retratadas por mais de duas horas e meia no longa, as quais revisam um passado – curiosamente tão familiar – encontrado em meio a vários desacordos, radicalismo, opressão, manifestações, autoritarismo e discursos, muitos discursos. Da incapacidade de se aventurar pelas vielas realmente desgastadas pela depressão – pequenas cenas no início da obra e só -, resta, logo, o vazio de uma verborragia.

Quem morre no momento climático antecipado, contudo, não são os tão queridos oradores, como o vaidoso Henry Hunt (Rory Kinnear), mas gente ordinária, esquecida por um roteiro de discursos anestesiados que não acompanha a amostra de suas dores. Já a construção de antagonistas parte de um maniqueísmo caricatural, em vista da imaginação de figuras intencionadas ao ridículo, como é o Príncipe Regente (Tim McInnerny). As conversas entre autoridades, por exemplo, são sempre revestidas de muitas citações ao espírito cristão, asco pelas massas e negação a qualquer tipo de transformação interna. Essa unidimensionalidade de tais personagens parte de uma legitimidade coerente dentro de um raciocínio próprio ao longa-metragem. O problema, porém, mora em como o embate termina esvaziando-se em prol de trocas de palavras repetidas e, portanto, desgastadas. Quando o autoritarismo enfim avança sobre as multidões – o que é uma renovação na obra depois de intermináveis conversas entre velhos engomados, em cômodos pomposos -, o choque continua até, por conta da condução dos últimos quinze minutos. Lá, Mike Leigh mantém uma certa ordem visual, a preenche com a encenação da confusão generalizada e então a rompe com os momentos de agressão e execução, que são particulares, pacientes e potentes. Mas a inexistência de uma ressonância, por sua vez, para além das imagens apresentadas, agride a carga dramática da obra.

É curioso, porém, que, em uma obra que num contexto dramático promove enormes discursos redundantes e vazios, Leigh ameace justo um aprofundamento na questão da prestabilidade e até mesmo integridade destes oradores. A que servem, por isso, palavras jogadas ao vento, se os seus responsáveis preocupam-se mais com caprichos do que com a realidade? Por exemplo, antes do massacre, dois personagens entram em confronto por conta da oratória, pois um quer discursar também, mas o outro não quer minimizar o seu espaço. Já, no mais, sugestões ao caráter ambíguo de Hunt parecem concretizar um aspecto questionador – entretanto, que, no final, não vinga. Do contrário, o longa-metragem é errático na exploração dos seus elementos, que abraçam variadas questões sem as complexar. Ora, uma das suas cenas introduz um movimento feminino que soa avulso da primeira vez que é citado, com mais de uma hora de duração gastada. Nesse sentido, o tratamento aos revolucionários que, em contrapartida a maior parte dos personagens, optam por chamar o povo ao combate armado também é conflituoso, com todo um núcleo sumindo de cena sem impactar a noção geral da obra. Por conseguinte, apenas sobram os paralelos que o presente, de constantes repressões policiais violentas, consegue criar com esse passado representado em pedaços. Na esperança de que uma menina alcance a paz no futuro, seus avós sonham com 1900.

Peterloo – Reino Unido, 2019
Direção: Mike Leigh
Roteiro: Mike Leigh
Elenco: Rory Kinnear, Maxine Peake, Pearce Quigley, David Moorst, Rachel Finnegan, Tom Meredith, Simona Bitmate, Robert Wilfort, Karl Johnson, Sam Troughton, Roger Sloman, Kenneth Hadley, Tom Edward-Kane, Lizzy McInnerny
Duração: 154 min.

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