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Crítica | Vai e Vem (2022)

Sororidade virtual globalizada.

por Michel Gutwilen
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Para o bem e para o mal, há uma certa similaridade entre os filmes que vêm sendo selecionados para a abertura do Olhar de Cinema nos últimos anos, como é agora com Vai e Vem (2022), mas também já foi o caso de O Dia da Posse (2021) e Para Onde Voam as Feiticeiras (2020) — e talvez mais exemplos façam parte deste recorte, mas 2020 é o marco inicial de quando passei a cobrir o festival. Independentemente de suas individualidades e gostos, parece haver uma busca curatorial por obras com uma localização temporal muito específica, que sejam extremamente vinculadas ao presente e representadas por realizadores(as) que trabalham dentro uma certa sensação de urgência, ainda que até conscientes das limitações que isso impõe no processo fílmico, mas ainda assim seguem em frente porque o timing não permite perfeccionismos, uma vez que sua realização não faria sentido em outro momento senão Hoje. Ainda no caso específico desta edição, o filme já abre também uma grande ponte de diálogo para uma lógica macro curatorial que prepara o terreno para a mostra Olhar Retrospectivo, focada na cineasta Su Friedrich, além de outras obras clássicas que gravitam ao seu entorno (com filmes de Sara Gómez, Barbara Hammer e Cheryl Dunne).

Se o próprio formato de co-autoria através da troca de “cartas fílmicas” não é nenhuma novidade — um outro bom exemplo recente é o curta-metragem Correspondência, entre a cineastas chilena Dominga Sotomayor e a espanhola Carla Simón — em Vai e Vem, ele parece surgir uma imposição circunstancial do mundo exterior, como se a pandemia de COVID-19 e o ́seu consequente isolamento levassem a uma necessidade comunicativa com outra pessoa e a ideia de obra individual fosse gerar uma sensação de incompletude — tal como uma amiga de Chica Barbosa reflete sobre a necessidade do gozo compartilhado em comparação ao prazer provocado pela masturbação. Então, é em um sentido desse resgate que a obra parece nascer, para driblar fronteiras reais a partir da virtualidade, por um projeto artístico que já se exaure parcialmente em seu próprio procedimento, já que sua realização é um fim em si mesmo para as duas diretoras como filme-terapia, mas que posteriormente permitem com que o público — e até elas mesmas, pois há de se presumir que um filme-carta não possui muito planejamento e é mais moldado em uma lógica de reinvenção, na qual a resposta de uma depende da outra mensagem anterior da outra — assistam ao resultado.

Mais especificamente ainda, é preciso dizer que Vai e Vem é sobre o encontro muito particular entre duas sensibilidades femininas, que assume para si a responsabilidade de ser um filme feminista, em busca de atingir, através de seus paralelismos, uma sororidade globalizada. Tendo como ponto de partida a situação particular na qual as duas cineastas amigas se veem sufocadas tanto pelas situações políticas atuais de seus respectivos países quanto pela pandemia, o micro expande para uma ideia macro de que todos esses problemas e angústias atingem uma totalidade de mulheres. 

É intrínseco ao projeto de Vai e Vem uma ideia de diálogos entre cineastas mulheres, seja diretamente na co-autoria entre Chica Barbosa e Fernanda Pessoa, por suas trocas de cartas fílmicas, mas também pela intertextualidade com outras diretoras que elas homenageiam. Neste caso específico, Pessoa e Barbosa fazem um movimento curioso de frontalidade diante do espectador, deixando explícito em seu prólogo as razões que levaram ao filme, assim como oferecem uma exposição das regras fictícias estabelecidas por elas para a troca de cartas, acrescida de uma lista de cineastas que serviram de inspiração para suas escolhas formais. Eis o verdadeiro ‘vai-e-vem’ do filme, pautado na ideia de Mulher como uma experiência coletiva, que encontra sua força e uma forma de sobreviver pela união de todas essas diferentes visões de mundo cinematográficas por realizadoras, do passado e do presente (e também nas entrevistadas por elas). Quando o mundo impõe um isolamento, é possível encontrar no Outro um espelho de si mesmo. 

Por isso, em um filme como esse, é até contraintuitivo pensar em uma ideia bem organizada de mise-en-scène, de qualquer unidade, seja pelo formato de cartas, que é mais reativo e espontâneo, mas até pela própria regra auto imposta pelas cineastas de que devem buscar as mais diversas referências autorais. Pelo menos, há aqui uma honestidade na própria irregularidade do projeto, que jamais parece ter a intenção de ser um filme pronto e perfeito, mas em construção experimental no sentido literal da palavra. Logo, o próprio ato de injetar diferentes olhares cinematográficos na mediação das imagens do presente seria também uma razão de ser do filme. 

Contudo, também seria injusto com o próprio filme aceitá-lo apenas como uma “celebração da experimentação imperfeita”, o que poderia isentá-lo de visões confrontantes. Questiono-me, por exemplo, sobre a existência de um conflito entre duas ideias e direções que o filme parece querer abarcar, que geram uma irregularidade nele. Por um lado, há esta lógica de narrativa-feminista pautada no próprio fazer cinematográfico como homenagem, que é a matéria na qual Pessoa e Barbosa realmente se provam como realizadores criativas, quando usam das imagens e manipulações do Cinema para concretizarem seus sentimentos abstratos diante do mundo, o que vai desde a sequência religiosa feita por Chica Barbosa, como nas sobreposições comicamente avacalhadas de Fernanda Pessoa na cena do meteoro digital caindo. Só que por outro lado, Vai e Vem também parece sentir uma necessidade de ser uma documentação histórica de seu tempo, de fazer com que o espectador esteja ciente dos acontecimentos do mundo conforme sua progressão. O problema é que esta objetividade realmente parece existir meramente no campo do relato, do informativo, de algo que muitas vezes nem parece encontrar forma fílmica, sendo mera exposição jornalística amadora (não no sentido qualitativo, mas de que são duas cidadãs narrando o mundo por seus pontos-de-vista) de imagens cruas do mundo, sem mediação.

Similarmente, outros questionamentos podem surgir, como a tentativa de abrangência temática sem um recorte mais delimitado, que por um lado é mero reflexo de um mundo que globaliza até seus problemas, mas também acaba sendo uma responsabilidade que o filme se dá e joga contra ele ao soar como um documentário cápsula do tempo que acumula pequenos fragmentos de problemas que hoje são enfrentados a níveis sociopolíticos e culturais, como se fosse mais importante dar um panorama geral do que lidar com algum deles aprofundadamente. No fim, não há dúvidas: trata-se de um filme de abertura.

Vai e Vem (Brasil, 2022)
Direção: Fernanda Pessoa, Chica Barbosa
Roteiro: Fernanda Pessoa, Chica Barbosa
Elenco: Fernanda Pessoa, Chica Barbosa
Duração: 82 mins.

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