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Crítica | Veneno Loiro: Os Bastidores de Instinto Selvagem

Os bastidores do arriscado projeto cinematográfico que se transformou em um dos grandes eventos culturais de 1992.

por Leonardo Campos
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O documentário Veneno Loiro: Os Bastidores de Instinto Selvagem é uma ótima opção não apenas para os interessados no filme em questão, mas também funciona como uma janela fascinante compreendermos os processos que estão por detrás de uma narrativa cinematográfica, isto é, a concepção do roteiro, os ajustes da fotografia, os ensaios do elenco, o estabelecimento dos figurinos, a composição da trilha sonora, dentre outros aspectos. Lançado em 1992 e dirigido por Paul Verhoeven, com a participação icônica de Sharon Stone e Michael Douglas, a produção não apenas se tornou um marco do cinema dos anos 1990, mas também um ponto de virada na representação da sexualidade e do papel da mulher no cinema. Neste documentário, Verhoeven desvela as nuances e polêmicas por trás da produção, revelando a influência de grandes cineastas como Alfred Hitchcock, cuja ousadia em explorar a sexualidade em seus filmes foi limitada pelos códigos de sua época. Esta consideração histórica estabelece um pano de fundo intrigante para entender como Instinto Selvagem desafiou as normas sociais, criando um espaço para a figura da mulher fatal moderna, encarnada por Catherine Tramell.

Catherine, interpretada por Sharon Stone, é uma personagem que transcende os estereótipos tradicionais. Como a femme fatale contemporânea, ela não apenas seduz, mas também manipula e controla seu destino, desafiando o papel que a mulher desempenhava nos filmes anteriores. Verhoeven destaca a construção de Catherine como um reflexo dos anseios e medos da sociedade moderna, direcionando a narrativa para uma exploração da sexualidade feminina que era ousada e, para alguns, chocante. Durante o documentário, é interessante ver como a figura de Hitchcock é mencionada como uma inspiração, ressaltando que, se vivesse em épocas mais liberais, ele teria adotado uma abordagem mais explícita e direta em suas obras. Essa reverência pelo diretor de Um Corpo Que Cai, com suas técnicas de tensão e suspense, adiciona uma camada extra de profundidade ao personagem de Catherine, pois, assim como as heroínas hitchcockianas, ela navega por um mundo de ambiguidade moral e desejo.

Outro aspecto revelador abordado no documentário é a relação do clássico moderno com um anterior filme de Verhoeven, O Quarto Homem. O diretor admite que o antecessor pode ser visto como um prelúdio, servindo como um laboratório para sua ousadia na forma de contar histórias. Verhoeven faz uma analogia divertida ao sugerir que O Quarto Homem poderia ser visto como a “versão britânica” de Instinto Selvagem enfatizando como seus projetos estão interligados por temas comuns, como a dualidade do desejo e da moralidade. Esta conexão entre os filmes não apenas enriquece a compreensão do espectador sobre o desenvolvimento do diretor, mas também ilustra como a liberdade criativa permitida fora do circuito conservador dos Estados Unidos gerou frutos abundantes nas narrativas de Verhoeven. A transição de um enredo mais sutil para um totalmente explícito em Instinto Selvagem delineia a disposição do cineasta em desafiar as convenções, mesmo que isso gerasse controvérsia e debate.

Além dessas revelações intrigantes, Veneno Loiro também destaca um elemento técnico crucial: a importância dos storyboards na produção do filme. Verhoeven explica que esses desenhos ajudaram tanto o elenco quanto a equipe técnica a visualizar não apenas as cenas, mas todo o clima que o filme pretendia evocar. Esta abordagem metódica e planejada se contrapõe à percepção muitas vezes caótica e improvisada do cinema. Os storyboards serviram como um mapa, guiando os artistas através da complexidade emocional e visual que a narrativa exigia. Ao mesmo tempo, as referências visuais a Hitchcock, como as icônicas passagens pela ponte de São Francisco, não servem apenas como homenagens, mas também como um elo entre as tradições do cinema clássico e a audácia da nova era cinematográfica. A intertextualidade assim manifesta reforça como o passado molda o presente, especialmente em um filme que, como Instinto Selvagem, provocou reações intensas e divisões entre críticos e espectadores.

Apesar de curto, Veneno Loiro é um documentário repleto de nuances, com uma reflexão poderosa sobre a evolução das narrativas cinematográficas, o papel da mulher e as limitações impostas pela sociedade ao longo da história do cinema. Por meio das ressonâncias das lentes de Hitchcock, da ousadia de Paul Verhoeven e da complexidade de Catherine Tramell, o espectador é convidado a reconsiderar o que significa ser uma femme fatale moderna. O documentário se torna, assim, uma homenagem não apenas a um filme, mas a um período de transição nas representações de gênero na tela e à audaciosa visão de um dos diretores mais provocadores do cinema contemporâneo. Importante, neste contexto, entender que a produção dividiu opiniões e causou muito furor não apenas em seu lançamento, mas também em seu lançamento.

O documentário Veneno Loiro também lança uma luz sobre as críticas que o cineasta recebeu em relação ao lançamento de Instinto Selvagem, um thriller psicológico que desafiou normas sociais e cinematográficas da época. A película, centrada na figura bissexual interpretada por Sharon Stone, não apenas explorou a sexualidade de seus personagens, mas também gerou uma onda de indignação nos movimentos sociais, que perceberam uma ligação irresponsável entre a homossexualidade e comportamentos criminosos, o que reascendeu o debate sobre a representação LGBT no cinema. A relação entre a trama e suas implicações sociais não foi de forma alguma a primeira; casos anteriores, como o de O Silêncio dos Inocentes, também exibiram antagonistas homossexuais que, assim como em Instinto Selvagem, tornaram-se alvos de reações críticas por parte de ativistas em defesa dos direitos LGBTQIAPN+.

A controvérsia em torno da produção culminou em uma reunião tensa com líderes do movimento que buscavam a modificação significativa das cenas e diálogos que consideravam problemáticos. No entanto, os resultados dessa reunião foram decepcionantes para os ativistas, pois Verhoeven e os produtores mantiveram sua visão artística intacta. O resultado foi uma resistência por parte dos grupos, que se manifestaram externamente ao set de filmagens com placas e faixas, fazendo sua voz ser ouvida, mesmo que muitas das suas exigências não tenham sido atendidas. Um episódio emblemático dessa luta foi a campanha chamada “Catherine é culpada”, que visava contestar o desfecho do filme. Essa ação expôs a preocupação dos ativistas de que a narrativa poderia reforçar estereótipos negativos sobre a homossexualidade, evidenciando a necessidade de um diálogo mais profundo sobre a responsabilidade das obras audiovisuais em moldar a percepção pública sobre identidades sexuais diferentes.

No entanto, mesmo em meio a essa turbulência, Instinto Selvagem se destacou por sua capacidade técnica e estética. O documentário revela que a trilha sonora de Jerry Goldsmith e as escolhas de direção de arte e fotografia são elementos inseparáveis que contribuem para a experiência emocional do filme. A música, considerada uma das composições mais profundas do cinema contemporâneo, acrescenta uma camada de tensão e sedução que complementa a narrativa instigante. O uso consciente da trilha sonora reflete a dualidade dos personagens e a ambiguidade moral presente na obra, convidando o espectador a questionar suas próprias percepções sobre a masculinidade, feminilidade e o que é considerado normal dentro da sexualidade humana.

Outro aspecto técnico fundamental que elevou a narrativa foi a sua direção de fotografia. Cada escolha visual serviu a um propósito claro, contribuindo para a construção da atmosfera da narrativa. A emblemática cena de introdução de Sharon Stone, cercada por espelhos que refletem uma luminosidade opulenta, simboliza a complexidade e a multiplicidade de sua personagem, Catherine Tramell. Além disso, a utilização de lâmpadas fluorescentes e os cenários cuidadosamente elaborados na famosa cena do interrogatório não apenas criaram um efeito visual impactante, mas também ressaltaram a dinâmica de poder e a manipulação que permeia as relações interpessoais no filme. A fotografia se transforma em um personagem vital dentro da obra, assim como as trilhas sonoras, e essa integração de técnica e narração é o que garante a relevância do filme ao longo do tempo. Uma obra-prima para ser contemplada.

Veneno Loiro: Os Bastidores de Instinto Selvagem — (Blond Poison: The Making of Basic Instinct) Estados Unidos, 2001.
Direção: Jeffrey Schwarz
Roteiro:  Jeffrey Schwarz
Elenco:  Sharon Stone, George Dzundza, Jeanne Tripplehorn, Leilani Sarelle, Michael Douglas, Denis Arndt
Duração: 17 min.

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