As conexões entre Um Corpo Que Cai e Instinto Selvagem, separados por décadas, mas interligados por questões ainda proeminentes nas sociedades que situam ambas as tramas são evidentes em diversas passagens da trama dirigida por Paul Verhoeven e escrita por Joe Eszterhas. Isso não quer dizer, caro leitor, que a saga da protagonista amoral interpretada pela atriz Sharon Stone seja uma releitura do filme de Hitchcock, mas há, no entanto, um processo de inspiração do texto dramático e das imagens da narrativa, em especial, na direção de fotografia de Jan de Bont, que estabelecem um diálogo interessante com o suspense clássico estilizado icônico mestre do suspense. Nesta análise, abordarei algumas peculiaridades das produções em questão, tendo como foco três aspectos em maior especificidade: a presença da mulher fatal como elemento para derrocada do protagonista, um traço noir persistente na cinematografia hollywoodiana ainda em filmes atuais, a simbologia da escada em espiral como representação visual do abismo emocional destes personagens diante de uma presença feminina marcante e o estabelecimento de planos e enquadramentos na produção de 1992 que emulam escolhas estéticas na trama de 1958, três dos principais paralelos que interligam histórias de tempos distintos, mas essencialmente similares em seu desenvolvimento narrativo.
As femme fatales sempre foram uma figura intrigante nas narrativas cinematográficas, simbolizando sedução, perigo e, frequentemente, uma complexidade psicológica que desafia as normas sociais. Duas das mais memoráveis representações desse arquétipo nas telas são Kim Novak como Madeleine Elster em Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock, e Sharon Stone como Catherine Tramell em Instinto Selvagem, de Paul Verhoeven. Ambas as personagens, embora distintas em contexto e temática, compartilham características que as tornam fascinantes e, ao mesmo tempo, perigosas. Como já exposto nas críticas e demais análises por aqui, o filme de 1958 é um thriller psicológico que segue a história de Scottie Ferguson (James Stewart), um ex-policial que sofre de acrofobia. Assim que Scottie se envolve em uma missão para seguir Madeleine Elster, uma mulher que ele acredita estar possuída pela alma de uma antiga amante, uma complexa teia de manipulação, mistério e obsessão se desenrola. Kim Novak, no papel de Madeleine, encarna um ideal de beleza etérea e uma fragilidade que esconde um plano muito mais sinistro. Por outro lado, mais explícito e ousado, haja vista as permissividades de seu contexto, Instinto Selvagem é um thriller erótico que apresenta Catherine Tramell como uma famosa autora de romances policiais, cuja vida é marcada por um assassinato e um jogo psicológico com a polícia. Sharon Stone aparece como uma mulher segura de si, manipuladora e altamente sexual, cuja inteligência e charme a tornam tanto atraente quanto perigosamente imprevisível. Na produção, Verhoeven faz tudo que Hitchcock, em sua época, não podia.
As cenas de nudez, a carga sexual sugerida e a violência física e psicológica, na trama de 1992, ganham uma visualidade amplificada, potencializando o que antes só podia ser sugerido pelo mestre do suspense, afinal, os códigos sociais e a relação com a censura, apesar de presente na década de lançamento do filme de Verhoeven, na ocasião de Hitchcock, eram muito mais rígidos e a audiência, ainda esperando os desdobramentos do que se tornaria o cinema nos anos 1960 e 1970, não estava preparada para tanto. Neste processo, é importante salientar que uma das principais semelhanças entre Madeleine e Catherine é o uso da sedução como uma forma de manipulação. Madeleine usa sua beleza e vulnerabilidade para atrair Scottie, atraindo-o para uma armadilha emocional e psicológica. Sua fragilidade é uma fachada que encobre uma natureza muito mais sombria, alinhada à forma como as femme fatales tradicionalmente operam. Ela não é apenas uma vítima; é uma agente de suas circunstâncias. Catherine, por sua vez, utiliza sua sexualidade de maneira mais assertiva e explícita. A sedução de Catherine é intensa e deliberada, uma estratégia consciente para controlar seu entorno e os homens ao seu redor. No famoso interrogatório em que ela cruza e descruza as pernas, Catherine não apenas desafia a autoridade do detetive, mas também clama sua sexualidade como uma arma.
Aqui, a manipulação é mais uma dança de poder, onde a femme fatale controla a narrativa de sua própria história. Ademais, tanto Madeleine quanto Catherine são mais complexas do que podem parecer à primeira vista. Em Um Corpo Que Cai, a identidade de Madeleine é um elaborado estratagema. Ela é, na verdade, uma manipulação de Judy Barton, que foi forçada a se transformar na imagem da mulher morta que Scottie procura. Essa dualidade confere a Madeleine uma profundidade trágica; ela não apenas é uma sedutora, mas também uma vítima do esquema de seu amante, tornando sua história uma reflexão sobre a ilusão e realidade da identidade feminina. Catherine, em contraste, é uma protagonista muito mais autônoma. Sua complexidade reside em sua capacidade de ser tanto uma criadora quanto uma destruidora, desafiando as expectativas do gênero. Ao longo do filme, ela se mostra como uma mulher que não apenas manipula os homens, mas que também opera fora das convenções tradicionais de feminilidade e moralidade. Catherine sabe que está sendo observada e usa isso a seu favor, transformando-se em uma figura quase incontrolável, o que nos leva ao seguinte ponto: a relação com o masculino, um traço preponderante para a compreensão das mulheres fatais no cinema.
As interligações de Madeleine e Catherine com os protagonistas masculinos, Scottie e Nick (Michael Douglas), são centrais para suas histórias. Scottie é, ao longo de Um Corpo Que Cai, mais uma vítima da obsessão e manipulação, incapaz de ver além de sua própria fantasia de amor e perda. A relação dele com Madeleine reflete uma visão romântica e tóxica que varre a vida das mulheres sob a guarda dos homens. Ao final, a tragédia se desenrola, mostrando os custos da obsessão e da idealização. Catherine, em Instinto Selvagem, apresenta uma dinâmica muito mais desafiadora com Nick. Ao invés de ser uma vítima passiva, Catherine instiga e choca a figura masculina, levando-o a um estado de confusão e desejo. O que ocorre entre os dois é uma batalha de vontades em que Catherine não apenas se recusa a ser dominada, mas se diverte com a manipulação que exerce. A relação deles oferece uma reflexão sobre o poder sexual feminino e as consequências do desejo. Em uma análise geral, ambas as personagens não apenas desafiam as expectativas masculinas, mas também questionam a construção da identidade feminina nos filmes, garantindo que suas histórias ressoem de maneiras profundas e duradouras nas mentes dos espectadores. O que nos leva ao espiral presente nas duas histórias, representados na escada da igreja no filme de Hitchcock e na casa de Nick no filme de Verhoeven, elementos que simbolizam, em ambas as tramas, a vertigem de seus protagonistas.
Rico em simbolismos, e a escada em espiral é um dos elementos mais fascinantes e significativos presentes em Um Corpo Que Cai. A escada não apenas cria uma atmosfera visual única, mas também serve como um potente símbolo de temas centrais do filme, como obsessão, desejo e a inevitabilidade do destino. A escada em espiral aparece em momentos cruciais da narrativa, especialmente nas cenas que se passam na missão de Scottie Ferguson. Localizada na torre da igreja de San Juan Batista, é emblemática não só pela sua arquitetura sinistra, mas também pelo seu formato circular que sugere um ciclo vicioso. A espiral, com sua natureza repetitiva e contínua, reflete a jornada psicológica de Scottie, que é aprisionado em um ciclo de obsessão e desespero. Assim, pode ser vista como uma metáfora para a obsessão de Scottie por Madeleine e seu emparelhamento emblemático com a realidade da morte. À medida que Scottie desce e sobe a escada, o movimento representa sua descida ao abismo emocional causado pela perda e pela incapacidade de escapar de sua própria psique. A escada se torna um símbolo da ascensão e descida do desejo, onde cada passo para cima traz à tona a visão idealizada de Madeleine, enquanto cada passo para baixo o leva mais fundo em sua tristeza e culpa. Isso ocorre também na dinâmica de Instinto Selvagem, com Nick sendo manipulado pela teia de Catherine, alvejado pelo desejo constante de possuir sexualmente uma mulher de personalidade singular.
Ademais, além de representar a obsessão, a escada em espiral também simboliza o conflito entre a realidade e a ilusão, que é central para a história. Scottie, em sua busca por Madeleine, é confrontado constantemente com as ilusões que cercam a mulher que ele idolatra. A escada, portanto, se torna um espaço de transição entre estas duas dimensões. Ao subir a escada, há uma ideia de estar mais perto do ideal, isto é, ao descer, há um retorno à dura realidade da sua própria impotência e incapacidade de resgatar Madeleine da morte. Tem outro ponto marcante também: a localização da escada em espiral na igreja de San Juan Batista é também digna de nota por ser um símbolo de espiritualidade e redenção, algo que contrasta com a jornada de Scottie, que é marcada pela desilusão e pela perda. Enquanto a escada leva à torre da igreja, um local que deveria simbolizar segurança e esperança, ela se torna o cenário de um dos mais trágicos momentos do filme: a queda fatídica de Madeleine. Isso ressalta a ideia de que a busca de Scottie por um objeto de amor idealizado não o levará à salvação, mas sim à sua própria destruição emocional. Numa perspectiva psicológica, a escada em espiral pode ser interpretada à luz das teorias de Freud sobre a projeção e a identificação. Scottie projeta seus anseios e vulnerabilidades em Madeleine, vendo nela uma idealização que nunca poderá ser alcançada. Isso pode ser contemplado também no jogo perigoso de Instinto Selvagem, pois a escada similar situada no prédio que nos direciona ao seu lar nos reforça que o personagem, tal como o policial de James Stewart, perdeu qualquer noção de racionalidade diante da marcante presença feminina que acomete os seus dias e transforma a sua existência em constante transtorno.
E, por fim, a presença de estradas sinuosas, contempladas na direção de fotografia de Robert Burks, em Um Corpo Que Cai, ressignificadas nas imagens concebidas por Jan de Bont, em Instinto Selvagem, são elementos importantes para entendermos as conexões entre as duas narrativas. Seguindo uma linha interpretativa que preconiza as simbologias presentes nas imagens, podemos afirmar tranquilamente que a escolha por enquadramentos abertos, ao colocar os personagens masculinos em estradas sinuosas, situam os espectadores em tramas onde as respectivas caminhadas demonstram os perigos vivenciados por dois homens arruinados pelo espiral de obsessão já representado pelas mencionadas escadas. As estradas sinuosas, frequentemente utilizadas no cinema, não representam apenas a jornada física dos personagens, mas também simbolizam as complexas emoções e os desafios que devem enfrentar. Nos filmes em questão, as paisagens urbanas e naturais, repletas de curvas e incertezas, espelham as trajetórias que os protagonistas masculinos vivem, repletas de perigos iminentes e armadilhas emocionais. Na produção de Hitchcock, a cidade de São Francisco é retratada com suas colinas e estradas sinuosas que parecem se entrelaçar com as obsessões e inseguranças do protagonista, Scottie Ferguson, interpretado por James Stewart. A topografia da cidade é mais do que um pano de fundo, pois funciona como uma extensão do estado mental do personagem.
A famosa sequência em que Scottie persegue Madeline, através de uma paisagem marcada por esses labirintos visuais acentua a sensação de desorientação que o permeia. Cada curva das estradas não é apenas física, mas um reflexo do seu estado psicológico deteriorado, em que o controle e a realidade lhe escorregam entre os dedos. Essa representação visual das estradas sinuosas introduz o espectador em um mundo de incerteza, criando uma intensa atmosfera de suspense, onde o verdadeiro perigo não reside apenas na perseguição física, mas na perda da sanidade. Já em Instinto Selvagem, as estradas sinuosas estão ligadas à vida sedutora e perigosa de Catherine Tramell. Aqui, as estradas não são apenas uma representação do espaço físico, mas também da sexualidade e do poder. A personagem utiliza sua atratividade como uma armadilha, levando os homens a tomarem decisões impulsivas e arriscadas. As sinuosas ruas de São Francisco também ecoam a manipulação psicológica que Catherine exerce sobre os homens, em especial sobre o detetive Nick Curran. As curvas das estradas representam as viradas inesperadas na narrativa, onde os protagonistas masculinos se veem cada vez mais enredados na teia de sedução e mistério que Catherine representa. A filmagem cuidadosa das paisagens urbanas ressalta os perigos invisíveis que habitam a psicologia feminina e como esses perigos podem desestabilizar os homens. Ambos os filmes utilizam as estradas sinuosas como um recurso visual para aprofundar as temáticas do desejo, obsessão e perda de controle.
A escolha de Hitchcock por uma arquitetura urbana complexa e a orientação dos elementos visuais por Verhoeven criam uma interseção entre o espaço físico e o emocional. Em ambos os casos, os protagonistas masculinos se encontram presos em um ciclo de incerteza, onde o ambiente os desafia a cada momento. As estradas sinuosas não são apenas um caminho a seguir, mas sim um labirinto metafórico que reflete suas próprias inseguranças e falhas. Essas representações visuais dos perigos enfrentados pelos personagens em Um Corpo que Cai e Instinto Selvagem revelam como as estradas sinuosas podem ser vistas como um elo entre o espaço físico e os conflitos internos. Enquanto Scottie lida com seus demônios emocionais e a incapacidade de se libertar de sua obsessão, Nick é tragado pela sedução e pela manipulação, simbolizando como as estradas, assim como as emoções humanas, podem ser traiçoeiras e imprevisíveis. Ambos os cineastas, hábeis em suas composições cinematográficas, utilizam tais metáforas visuais para explorar a fragilidade das dimensões psicológicas de suas figuras ficcionais masculinas, acossadas frente aos perigos que habitam a representação fatal do mundo feminino que, sobrecarregado de pulsões de morte e de desejos, os levam rumo ao desconhecido. E, antes de finalizarmos, importante ressaltar que o filme de Hitchcock apresenta os fabulosos figurinos de Edith Head, uma lenda na história do cinema hollywoodiano, sendo o famoso casaco branco um elemento que ressoa em uma das composições de Ellen Mirojnick para a personagem de Sharon Stone, utilizado no caminho para a icônica cena do interrogatório, imortalizada pela famosa cruzada de pernas (e para além disso) que habita o nosso imaginário coletivo. No geral, duas tramas marcantes e necessárias para quem curte cinema mais que mero entretenimento.