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Crítica | Amor, de Clarice Lispector

por Marcelo Sobrinho
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Possivelmente nenhum autor do modernismo brasileiro, ainda que falemos da geração de 1945, com fortes influências do existencialismo, tenha mergulhado tão fundo no que há de mais misterioso e indescritível na vida humana quanto Clarice Lispector.  Do rato pisoteado na orla de Copacabana, em Perdoando Deus, à barata esmagada, da qual escorrem seus fluidos vitais, em A Paixão Segundo G.H., sempre coube à epifania clariceana a revelação de um mundo obscuro, ancestral e profundamente transformador. Não acho que a obra de Clarice apenas tente revelar a cegueira de um mundo autômato e alienado pela modernidade. Há algo muito mais profundo em suas epifanias. Algo que a escritora ucraniana apenas sonda, apenas vislumbra, mas jamais esgota ou explica completamente. Esses momentos epifânicos não trazem a compreensão, mas apenas oferecem as chaves para os personagens e para os próprios leitores entrarem em território perigoso.

No caso do conto Amor, pertencente ao livro de Laços de Família, o que se tem é a epifania do cego mascando chiclete, que atormenta e fratura a normalidade automática da dona de casa Ana, que o vê do bonde onde se encontra. Percebemos nesse conto alguns aspectos temáticos extremamente característicos da autora. Em primeiro lugar, não se trata de uma mulher infeliz, aviltada por uma realidade que a massacra ou que a aprisiona. O narrador deixa isso bastante claro quando declara: “Por destinos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como o tivesse inventado”. Ana está sim plenamente adaptada ao seu mundo de mulher de classe média, mãe e esposa. O bonde que a conduz pelas ruas do Rio de Janeiro não a conduz rumo à libertação e isso é um ponto precípuo na compreensão da obra. Ela é conduzida na verdade a uma ancestralidade que a desgoverna. É belíssima a construção imagética que Clarice esculpe no momento em que ela vê o cego mascando chiclete – o bonde freia bruscamente e sua sacola de ovos cai no chão, quebrando-os. Está consumado o corte. A fratura que inicia a epifania.

É maravilhosa inclusive a metáfora do próprio bonde, que freia bruscamente como se tivesse chegado à beira de um precipício, ao qual Ana é arremessada. Como grande amante dos cenários cariocas, Clarice leva a sua protagonista por uma viagem aterrorizante pelo Jardim Botânico, com o qual a escritora tinha uma relação bastante íntima. A peregrinação de Ana se dá por um mundo de estranhamento e de sensações contraditórias ou, como o próprio narrador nos revela, um mundo de “náusea doce”, de “riqueza apodrecida” e de “decomposição perfumada”. A experiência de tantos personagens clariceanos com a indefinição do real e com o esgotamento propriamente semântico para tentar decifrá-lo é uma dos cernes de sua obra e, mais uma vez, toda essa vivacidade é comparada a estar em um verdadeiro inferno. Em A Paixão Segundo G.H., temos uma das sentenças mais pujantes de sua obra: “É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno”. Em Amor, o caminho muda, mas Ana parece tocar a mesma matéria que G.H.: “O Jardim era tão bonito que teve medo do Inferno”. A inefabilidade demoníaca da vida se coloca outra vez.

A razão do título do conto não é menos misteriosa, mas pode ser compreendida se olhada de forma mais abrangente. Não se trata aqui de amor romântico. Trata-se de um certo amor pela vida, algo como um amor fati nietzscheano, isto é, amor enquanto entrega para o mundo. Entregar-se à existência em toda a sua dimensão, incluindo suas variadas questões que permanecerão sem respostas, é um ato de coragem e quase que de desvario. A transformação a que Ana se submete praticamente a coloca fora de si mesma e, quando ela “apaga a flama do dia” para finalmente repousar, o narrador onisciente revela que ela o fazia com “um gesto que não era seu”. Clarice encerra Amor mesclando o melhor de sua delicadeza com o mais terrível de sua investigação da existência. Essa é uma de suas obras em que o aterrorizante mais se mistura ao belo e Clarice demonstra isso com alegorias que vão se repetindo ao longo de todo o conto.

A obra de Clarice segue como um dos maiores desafios literários para qualquer leitor. Não por recorrer a eruditismos ou por utilizar uma linguagem excessivamente empolada, mas porque, em Amor, ela novamente não esconde suas pretensões nem um pouco metafísicas. A banalidade cotidiana de todos os acontecimentos desse, que é um de seus contos mais fundamentais, demonstra o seu apreço incansável pela aspereza do real (para usar uma de suas expressões mais canônicas, que encerra o conto Mineirinho). Amor só poder ser saboreado se for assim compreendido.

Amor (Laços de Família, 1960 – Brasil)
Autor: 
Clarice Lispector
Editora: Rocco
Número de páginas: 12

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