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Crítica | Doctor Who: O Coração da TARDIS, de Dave Stone

por Rafael Lima
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Equipe: 2º Doutor, Jamie, Victoria/ 4º Doutor, Romana I (+ UNIT, Brigadeiro Lethbridge Stewart, Sargento Benton)
Espaço: Lychburg (Estados Unidos), Londres
Tempo: Fim dos anos 1970

Em O Coração Da TARDIS, Dave Stone apresenta um multi-Doctor diferente do que se tornou convencional, pois não há um Doutor protagonista: ambos os Doutores dividem o protagonismo. O universo expandido brincou mais com as possibilidades do multi-Doctor do que a TV, trazendo não só plots em que os Doutores tinham igual importância, mas onde sequer se encontravam (ou ao menos a encarnação mais jovem não via o seu eu futuro). Mas mesmo tais histórias apresentam desde o início uma ligação clara entre os plots dos Doutores, enquanto este livro deixa o leitor se perguntando por muito tempo como as aventuras do Segundo e do Quarto Doutor vão se conectar.

Na trama, o 2º Doutor (para ele, o livro se situa entre The Tomb of The Cybermen e The Abominable Snowmen) está fazendo reparos na TARDIS, tentando ter maior controle sobre a nave. Mas ao fazer um teste com os sistemas de segurança desligados, ele se materializa violentamente na cidade de Lychburg, nos anos 70. Quando o Doutor, Jamie, e Victoria saem para explorar, descobrem não só que uma série de homicídios bizarros vem ocorrendo, mas que a TARDIS está inacessível. Enquanto isso, o 4º Doutor e Romana buscam a Chave do Tempo, quando são alertados pelos Time Lords sobre uma força desencadeada no continuum capaz de devastar o Universo. Mas o Doutor não está interessado na missão que os Time Lords querem lhe dar, preferindo atender a um pedido de socorro da UNIT, apenas para descobrir que o Brigadeiro foi sequestrado.

Herdeiro de Douglas Adams na forma de trabalhar a ficção científica com um pé no nonsense, Dave Stone brinca com os diversos tipos de trama comuns a Doctor Who, como a TARDIS inacessível, o plot cósmico e as histórias da UNIT. Stone começa o romance seguindo três perspectivas; O 2º Doutor e seus Companions em Lychburg; o 4º Doutor e Romana no espaço, e a UNIT do ponto de vista de Katharine Delbane, uma agente infiltrada do MI5. Enquanto as histórias do 4º Doutor e da UNIT não demoram a se encontrar, a trama do 2º Doutor permanece alheia aos outros núcleos até o terceiro ato. A escolha por manter os dois núcleos praticamente sem conexão até o fim do livro revela-se uma opção perigosa. Embora seja interessante manter o leitor imaginando como as tramas se entrelaçarão a partir de certo ponto, esta falta de conexão pode incomodar alguns. Essa intersecção eventualmente acontece, e ela funciona, mas deixa a sensação que as aventuras do 2º e do 4º Doutores poderiam ter rendido cada uma um livro diferente, e que não precisariam da conexão para funcionar. Isso não significa que não haja coesão na obra, pois o estilo de humor nonsense (muitas vezes sombrio) do autor se encontra nos dois segmentos, dividindo até algumas temáticas, como a situação de “peixe fora d’água” que Victoria e Romana enfrentam.

O núcleo do 2º Doutor acaba sendo o mais fraco do livro. O mistério em torno dos surtos homicidas em Lychburg é até interessante, e a forma farsesca com que Stone lida com a violência nestes trechos é divertida. O escritor assume o cartunesco de forma flagrante ao fazer da cidade uma homenagem a Os Simpsons, espalhando várias referências à série da família amarela, vide a presença de um arrogante vendedor de quadrinhos, um barman chamado Moe, o Doutor fazendo Jamie escrever no quadro negro, etc. O problema é que falta certa humanidade neste núcleo para que o leitor se importe com o que está havendo. Tais passagens não são mal escritas ou enfadonhas, mas um pouco de peso emocional teria tornado a experiência mais completa. 

Stone compreende o time da TARDIS da 5ª temporada, ainda que esteja menos interessado em Jamie do que nos outros. O escritor capta bem os maneirismos do 2º Doutor, gerando passagens bem divertidas, mas sem abrir mão de dar ao Time Lord momentos mais profundos, vide a bela conversa entre o Doutor e Victoria no fim do livro. Falando na moça vitoriana, é ela quem traz os momentos mais interessantes em Lychburg. A obra traz uma Victoria que ainda está se habituando  aos mundos fantásticos para onde o Doutor a leva, estando confusa diante do cenário dos anos 70. Essa inadequação atinge o seu ápice quando a moça se perde em um shopping, vide a cena onde ela se vê “presa” em uma escada rolante, ou o seu choque pudico ao entrar em uma loja de roupas íntimas.

Embora o núcleo do 2º Doutor tenha os seus momentos, as melhores partes da obra se encontram no núcleo do 4º Doutor. Há algo metalinguístico na forma com que o autor estabelece a ameaça da história, pois ele trata os fatores macros como o perigo universal e os detalhes pseudocientíficos com um descaso hilário. O Doutor não tem paciência para ouvir as explicações do enviado dos Time Lords sobre o tal desastre, e rapidamente corta a ligação ao saber que o Brigadeiro está em perigo. O trecho não apenas mostra a forte amizade existente entre o Doutor e o Brigadeiro, mas é um comentário sobre os cataclismos cósmicos na ficção científica, ao apontar que eles são dramaticamente inúteis e incompreensíveis, se não houver pessoas de carne e osso em risco.

O autor nos dá esse ponto de vista mais humano através de Katharine, a agente do MI5 infiltrada na UNIT. É interessante como ela observa a atmosfera quase familiar existente dentro da organização e como o fato de estar traindo a confiança dessas pessoas a incomoda. Além disso, o espanto e incompreensão com que ela reage ao tipo de ameaça que cerca a UNIT e a própria presença do casal de Time Lords dão um aspecto mais pé no chão à aventura, o que é muito bem vindo. Além disso, a personagem tem uma interação muito interessante com os regulares da série, especialmente Benton, que mostra o seu lado mais antipático ao saber que a jovem era uma espiã; e Romana, que despeja sobre ela todo o esnobismo típico de Gallifrey.

Stone lança um olhar bastante respeitoso para a UNIT neste romance, ao construir a aventura quase como um canto do cisne da formação clássica da Família UNIT ao situar a história no que parecem ser os últimos meses do Brigadeiro Lethbridge Stewart à frente da organização. É interessante observar como aos poucos, Benton e o Brigadeiro vão ganhando o respeito de Romana, o mesmo respeito que provoca a crise de consciência da Agente Katharine. Embora esteja longe de ser um romance nostálgico, O Coração da TARDIS traz as suas homenagens à Família UNIT, como o momento em que Benton e o Doutor lembram de forma saudosa ex-colegas como Jo e Harry.

A obra explora de forma fantástica a dinâmica entre o 4º Doutor e Romana, captando com perfeição as características individuais de cada um. O 4º Doutor funciona muito bem dentro do estilo de história mais jocoso que o autor propõe (não por coincidência, esse foi o doutor escrito por Douglas Adams, clara referência do autor). A leitura anárquica que Tom Baker trouxe para o papel está perfeitamente posta nas páginas, onde o Doutor é capaz de ir  da alegria juvenil para a fúria justa em segundos. O momento em que ele engana o 2º Doutor ao se esconder na TARDIS e disfarçar a alteração que fez no painel de controle da nave de seu antecessor é brilhante, pois o 4º Doutor não sabe se fica orgulhoso por ter enganado o seu antigo eu, ou bravo por ter sido enganado.

A ideia de colocar Romana I em uma história UNIT é fantástica, pois esta encarnação é uma Time Lady ainda fortemente apegada à filosofia de Gallifrey. Então Romana não fica nada feliz quando o Doutor deixa de lado a busca pela Chave do Tempo e uma missão dos Time Lords para resolver os problemas dos humanos. A Companion  não entende o que o seu parceiro vê de tão bom na Terra, e suas primeiras interações com a UNIT (a irritação dela com os códigos militares é de deixar o leitor com um sorriso de orelha a orelha) e suas conversas com a inexperiente Katharine não fazem muito para ela mudar de ideia. Mesmo as ameaças que ela encontra na Terra não a impressionam, vide um dos melhores trechos do livro onde a garota é interrogada por terroristas tentando intimida-la. É somente uma pena que Stone deixe K9 “em reparos” logo no começo da história, ainda que seja compreensível, vide o número de personagens presentes na trama.

O Coração Da TARDIS  é um romance muito interessante da série, onde o autor consegue imprimir o seu estilo jocoso e metatextual, mas sem perder o coração de seus principais personagens. Ainda que o caráter multi Doctor seja um pouco mal resolvido e o segmento do 2º Doutor não seja tão envolvente quanto o do 4º Doutor, o livro de Dave Stone ainda merece ser lido pela forma com que articula de forma inteligente diferentes estilos de histórias de Doctor Who.

Doctor Who: O Coração Da TARDIS (Heart Of TARDIS)- Reino Unido, 05 de Junho de 2000
Autor: Dave Stone
BBC Past Doctor Adventures # 32
Publicação: BBC Books
111 Páginas

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