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Crítica | Doctor Who: Os Duendes Demoníacos de Netuno, de Martin Day e Keith Topping

por Rafael Lima
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Equipe: 3º Doutor, Liz (+ UNIT, Brigadeiro Lethbridge Stewart, Sargento Benton, Capitão Mike Yates)
Era UNIT: Ano 3
Espaço: Reino Unido, Sibéria, Genebra, Nevada.
Tempo: 1970

Poucos períodos de Doctor Who foram tão atentos ao seu cenário político quanto os anos em que Jon Pertwee esteve à frente da série. Muito disso se deve ao fato de que neste período Doctor Who tornou-se tanto uma série de ficção científica quanto de espionagem, com este último subgênero sendo indissociável de temas políticos. Os Duendes Demoníacos de Netuno, livro de estréia da linha Past Doctor Adventures, escrito por Martin Day e Keith Topping, é fiel a esse espirito político da Era do Terceiro Doutor, de fato chegando a ser muito mais direto no trato das tensões internacionais abordadas apenas de forma metafórica pela série.

Na trama, situada após a saída de Liz Shaw (mas antes da chegada de Jo), o 3º Doutor e a UNIT investigam um estranho evento cósmico onde uma grande massa vinda do espaço se fragmentou de forma incomum, fazendo com que o Time Lord desconfie que se trata de algo mais grave do que uma mera chuva de meteoros. Ao mesmo tempo em que uma série de mortes começa a ocorrer em um festival de música no interior da Inglaterra, uma equipe militar soviética chega ao país para capturar o Doutor. Para piorar a situação, o Brigadeiro Lethbridge Stewart encontra evidências de uma conspiração internacional no coração da UNIT, que ameaça destruir a organização.

Os Duendes Demoníacos de Netuno configura-se como um romance de espionagem, trabalhando tanto os aspectos mais sutis do subgênero, com suas intrigas internacionais, quanto os mais explosivos, ao rechear a obra com cenas de ação de caráter grandioso que a série não teria tido o orçamento para realizar nos anos 70. O formato literário também permite à história aderir a natureza global geralmente ligada às histórias de espião, ao possuir passagens não só no Reino Unido, mas também na Suíça, na Sibéria e no estado americano de Nevada. A prosa de Day e Topping é fluída e envolvente, estabelecendo diversos núcleos de personagens sem permitir que nenhum se torne supérfluo ou incoerente com a narrativa como um todo. O livro nos dá uma visão mais ampla do funcionamento da UNIT em um nível internacional, permitindo que conheçamos outras divisões da organização, como a divisão americana e a divisão soviética, além da tão citada sede de Genebra, sem tornar essa ampliação monótona, como já ocorreu com outros autores tentando abordagens semelhantes. Da mesma forma, a obra aborda como outras agências de segurança ao redor do mundo encaram a UNIT e seus métodos, assim estabelecendo o papel da organização dentro de um ponto de vista geopolítico.

O livro apresenta dois tipos de antagonistas, sendo o primeiro de natureza alienígena e o segundo de natureza humana. Os Waro, os tais duendes demoníacos do título, surgem como criaturas brutais com um pensamento de colmeia, cujo ódio profundo por tudo e todos deixaria até os Daleks um pouco chocados. Embora sejam vilões simples, os Waro são muito ameaçadores pela forma como a brutalidade de seus ataques é descrita, o que gera ótimas passagens de ação, como o momento em que os Waro atacam um avião da UNIT. O plot da conspiração não chega a ser um terreno novo para os livros da Era UNIT, com temáticas semelhantes tendo sido exploradas em As Escalas da Injustiça e Quem Matou Kennedy. Mas os escritores levam o cenário da conspiração política mais longe, já que dessa vez não é encabeçada por uma agência governamental fictícia cujos líderes têm motivações pessoais, mas sim pela CIA, cujas motivações, ainda que nefastas, visam de forma distorcida o interesse de um país.

Embora o romance seja bem construído, não se pode negar que escorrega um pouco em seu terço final, ao apresentar de forma tardia uma nova raça alienígena que tem a chave para a derrota dos Waro. Ainda que os autores tentem contextualizar esta nova espécie, inclusive utilizando a mitologia envolvendo alienígenas nos Estados Unidos, como o caso Roswell e a Área 51, o atraso com que estes personagens entram na trama faz com que soem como Deus Ex Machina. Além disso, se o plot da conspiração é mais complexo do que em outros romances, ele acaba por se encerrar deixando pontas soltas, algumas claramente intencionais, com interessantes portas abertas para o futuro e outras que apenas prestam um desserviço a este livro.

Os autores captam com perfeição a personalidade mais aristocrática e ressentida pelo exílio do Doutor da 7ª temporada. Trechos como a visita que o Time Lord faz a um clube de cavalheiros britânicos são extremamente divertidos por brincar com a postura mais blasé desta encarnação, enquanto a conversa que ele tem com Liz onde lamenta não ter podido levá-la para conhecer o Universo expõe um pouco da solidão e da vulnerabilidade que o Doutor escondia neste período inicial do exílio. Liz é trazida de volta nesta aventura, quando a investigação leva a UNIT a Cambridge. O livro coloca Liz questionando-se sobre a decisão de ter deixado a UNIT, pesando os prós e contras de ter se afastado da organização e do Doutor para ter uma vida acadêmica normal, o que é um conflito interessante, mas que parece perder o interesse dos autores a partir de certo ponto, tirando um pouco do brilho que este breve retorno da Companion poderia ter. Por outro lado, esta é uma grande história para o Brigadeiro Lethbridge Stewart. As passagens passadas em Genebra mostram o Brigadeiro na posição de ser um soldado que não pode mais confiar na cadeia de comando. Assim, o livro não só coloca o líder da UNIT em um interessante lugar de dilema moral, mas também dá alguns grandes momentos de ação para o Brigadeiro.

Entre os personagens originais apresentados destaca-se a Capitã Valentina Shuskin, da UNIT soviética, que desenvolve uma interessante relação de respeito mútuo tanto com o Doutor quanto com Liz, ao mesmo tempo em que mantém certa rivalidade com o Capitão Yates, cuja visão machista não permite que encare com bons olhos uma mulher numa posição igual a dele dentro da hierarquia militar. Por outro lado, se personagens como o Controlador — o misterioso chefe da CIA responsável pelas atividades da agência vistas no romance –, depende do mistério para ser mais efetivos, outros como o Visconde Rose, que tem um papel importante na chegada dos Waro na Terra, poderiam ter tido um pouco mais de desenvolvimento, já que ele acaba surgindo como um vilão com motivações pouco claras, para não dizer rasas.

Os Duendes Demoníacos de Netuno é uma leitura divertida, que começa como um eficiente pastiche Sci Fi de John Lé Carré e Tom Clancy, e se encerra com um clímax explosivo envolvendo uma grande batalha aérea, conseguindo desenvolver seus personagens principais de forma satisfatória no caminho, apesar das falhas do 3º ato. Para aqueles que gostam dos elementos de histórias de espionagem que sempre cercaram a era do Terceiro Doutor, a obra de Martin Day e Keith Topping é um prato cheio.

Doctor Who: Os Duendes Demoníacos de Netuno (The Devil Goblins From Neptune) – Reino Unido, 02 de Junho de 1997
Autores: Martin Day, Keith Topping
BBC Past Doctor Adventures # 01
Publicação: BBC Books
246 páginas.

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