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Crítica | Pacto Sinistro, de Patricia Highsmith

A magnífica e assustadora estreia de uma grande autora.

por Ritter Fan
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(arte: Geoff Grandfield)

O nome Patricia Highsmith me acompanha há décadas. Claro, isso deve acontecer com muitos cinéfilos em relação a diversos autores literários, mas, no meu caso, o nome da texana que adotou como nom de plume seu segundo nome, o primeiro é Mary, combinado com o sobrenome de seu padrasto, o artista Stanley Highsmith, foi, na categoria “autores modernos”, o que sempre ficou em minha mente, mais até do que outros como Philip K. Dick, e  reaparecendo de tempos em tempos e reacendendo minha curiosidade que só fui saciar muito recentemente, com a leitura de Pacto Sinistro, seu romance de estreia, publicado em 1950 e adaptado já duas vezes para o audiovisual, a primeira delas já em 1951 e por ninguém menos do que Alfred Hitchcock.

Não sei se por ter demorado tanto para começar a ler suas obras ou por justamente ver seu nome em filmes de que gosto muito, como o já citado longa de Hitchcock, o razoavelmente recente Carol, de Todd Haynes e minha “gota d’água” pessoal para embarcar nessa jornada, ainda que eu não goste tanto assim, Águas Profundas, esperava muito, mas muito mesmo de Pacto Sinistro, mesmo tendo perfeita consciência de que é raro um autor literário já começar sua carreira com algo fenomenal. Depois da leitura – daquelas que não me deixaram fechar o livro por mais do que 24 horas contínuas e isso porque fiz esforço para me segurar – posso dizer com muita tranquilidade de que minhas expectativas foram não só atingidas como surpreendentemente despedaçadas por um romance angustiante, assustador e magnificamente bem escrito que mergulha na psique humana com um olhar pessimista de fazer os pelos da nuca se eriçarem.

Apesar de Highsmith ser provavelmente mais conhecida por criar o personagem Tom Ripley, que figura em nada menos do que cinco de seus romances, sua obra inaugural merece grande destaque. Nela, dois homens – o playboy Charles Anthony Bruno e o arquiteto ainda em vias de construir sua carreira Guy Haines – se conhecem em um trem e começa uma conversa sinistra impulsionada por Bruno que chega a propor uma “troca de assassinatos” com Haines: Bruno mataria sua esposa Miriam, de quem Haines quer se divorciar e Haines, em troca, mataria seu o pai de Bruno, que ele odeia. Na cabeça psicótica de Bruno, como não há motivações para um matar o “alvo” do outro, eles seriam crimes perfeitos. Tudo acaba com Haines descartando ironicamente a ideia, mas que Bruno, claro, interpreta como aprovação, o que o leva a matar Miriam com suas próprias mãos e, depois, cobrar insistentemente o mesmo de Haines.

Para quem viu o filme de Hitchcock e, por isso, acha que sabe o que acontece, façam um favor a si mesmos e leiam o livro para surpreender-se como eu me surpreendi. Hitchcock, com todo o seu brilhantismo e mesmo fazendo uma adaptação excelente, não chega ao nível fascinantemente doentio que Highsmith alcança em sua razoavelmente curta obra, pois ela, usando narrativa em terceira pessoa limitada, reveza entre seus dois ao mesmo tempo bem diferentes e bem parecidos personagens em uma teia de ramificações angustiantes que vai sendo lançada e trançada na medida em que a narrativa enganosamente simples em execução é desenvolvida.

O interesse de Highsmith está na valoração de uma vida humana para todos nós. O que ela significa para pessoas em tese comuns quando pressionadas ou empurradas para um canto de onde não conseguem escapar? Enquanto Bruno é mais facilmente identificável como vilão, ainda que haja muitas nuances em seu comportamento, inclusive um discreto subtexto homossexual, Haines, em tese o “mocinho” e, portanto, mais próximo de nós, leitores, começa a ver suas defesas psicológicas ruírem na medida em que seu colega de trem faz sua presença ser sentida cada vez com mais intensidade. Para Bruno, tudo é equiparável a um desafio, a obstáculos que ele se sente seguro o suficiente – em sua arrogância extrema – em ultrapassá-los. Para Haines, tudo é uma tortura, mas uma tortura que, lá no fundo, ele começa a subconscientemente apreciar.

É na construção e na subsequente desconstrução de Haines que repousa o grande trunfo narrativo de Highsmith. Muitos leitores até podem achar que o personagem não é crível, pois ele poderia muito facilmente evitar o que ocorre com ele tomando essa ou aquela medida antes que o cerco de Bruno se feche, mas a autora não está interessada exatamente em colocar a lógica cartesiana à frente de tudo. Seu romance é, antes de tudo, um thriller psicológico, com ênfase no psicológico. Haines é sem dúvida uma vítima. No começo pelo menos… Na medida em que a trama avança, Haines muda e conceitos em tese basilares começam a ser relativizados e as atitudes que alguns podem ver como “burras” por parte do personagem são explicadas – ou explicáveis – pelo que podemos vislumbrar de seu subconsciente que, aos poucos, caminha na direção subversiva e doentia de Bruno, criando uma convergência que o leitor não quer, se debate contra, mas não tem como evitar e, ao final, para nosso horror, entendemos que Haines existe para nos representar, algo que é de certa forma resumido no importante e definidor encontro dele com o amante de Miriam ao final.

Patricia Highsmith, portanto, começa sua carreira ilustre com nada menos do que uma obra-prima, um romance perturbador, asqueroso, doentio e brilhante, que permanece na mente do leitor como uma assombração, fazendo-nos perceber que provavelmente existe, em todos nós, um lado que simplesmente nos recusamos a aceitar e que lutamos para manter esquecido, mas que está sempre pronto para se apoderar de nossa mente. Pacto Sinistro é um triunfo claustrofóbico e assustador do suspense psicológico que sussurra terríveis ideias em nossos ouvidos como Bruno faz com Haines.

Pacto Sinistro (Strangers on a Train – EUA, 1950)
Autora: Patricia Highsmith
Editora original: Harper & Brothers
Data original de publicação: 15 de março de 1950
Editora no Brasil: Editora Ediouro
Data de publicação no Brasil: 24 de abril de 2006
Tradução: Tite de Lemos
Páginas: 304

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