Se é para uma propriedade ser explorada ad infinitum, algo que é a regra cada vez mais absoluta em Hollywood, é necessário que ela se renove e se reinvente. Mas de verdade, não “mais ou menos”, não mexendo aqui e ali para ver se dá certo mais uma vez. Se formos real e honestamente espremer a franquia Predador que, no geral, eu até considero acima da média (se esquecermos dos dois crossovers com os xenomorfos, claro) comparadas com outras séries cinematográficas de ação, concluiremos que os três longas produzidos entre 1990 e 2018 não passaram de repetições do clássico de 1987 em outros cenários e com mais explosões. Da selva pulamos para a selva de pedra, depois para uma selva alienígena com mais de um Predador, e, mais para a frente, de volta para um cento urbano, mas com cachorros predadores. Somente com a chegada de Dan Trachtenberg é que uma das mais famosas criaturas alienígenas do Cinema ganhou o tipo de tratamento que precisava.
Melhor do que isso, Trachtenberg não só se recusa a repetir o que já foi feito, como ele sequer aceita reprisar o que ele mesmo fez. Em O Predador: A Caçada, ele voltou no tempo e mandou um yautja para a Terra no começo do século XVIII nas planícies que viriam a fazer parte dos EUA, com uma protagonista nativa. Na animação Assassino de Assassinos, a viagem no tempo continua, mas na forma de uma semi-antologia que nos leva à Era Viking, ao Japão Feudal e à Segunda Guerra Mundial com o objetivo de introduzir uma grande novidade na mitologia da franquia: a revelação de que todos aqueles que derrotaram um yautja são colocados em estase para “usos futuros”, o que resulta em uma enorme quantidade de pessoas, já que, pelo menos com base no que pudemos testemunhar até o momento, os predadores são muito manés e só conseguem matar coadjuvantes, nunca o real alvo da caçada. Agora, na mais ambiciosa produção do cineasta nesse universo, ele faz de um jovem yautja o protagonista do filme, aquele por quem o espectador realmente deve torcer.
Mas Trachtenberg não faz só isso. Ele vai além e nos entrega algo que, muito provavelmente, irritará muita gente, mas que é o que realmente torna Predador: Terras Selvagens um filme marcante na franquia: ele subverte o que se espera quando se lê “Predador” no título e coloca nas telonas uma boa e velha buddy comedy, ou “comédia de amigos”, em um contexto de coming of age, ou “história de amadurecimento”. Sim, é isso mesmo que vocês leram, meus caros. Mas relaxem, pois não falta ação no filme. Aliás, é ação do começo ao fim, quase ação demais da conta, com apenas um brevíssimo intervalo para respirar a ponto de uma descrição hábil do filme ser algo como “o jovem yaultja Dek apanha como boi ladrão nos 20 minutos que antecedem a aparição do título do longa, somente para, ato contínuo, continuar apanhando do mesmo jeito até os créditos começarem a subir na tela”. Chega a dar pena do coitado do Predador da vez, mas com a grande diferença que ele, como protagonista, realmente tem um arco de desenvolvimento completo (mas longe de complexo, obviamente), que o leva de um jovem adulto obcecado em mostrar seu valor para seu clã e traumatizado pelos eventos que testemunha, tornando-se um yaultja com personalidade própria, que compreende o valor de trabalho em equipe e da formação de laços.
Depois de um começo potente em Yaultja Prime, com Dek (Dimitrius Schuster-Koloamatangi) sendo treinado por seu irmão mais velho Kwei (Mike Homik), apesar de seu pai Njohrr (Reuben De Jong) querer matá-lo por ele ser o mais fraco do clã, a história caminha sem firulas, com Dek sendo catapultado para o planeta Genna onde, para provar seu valor, precisa caçar um Kalisk, criatura que é como o Santo Graal dos yaultjas e o MacGuffin do filme. Todo ferido, sem suas armas e sem o icônico capacete e em um planeta em que todos os seres vivos, sejam eles animais ou vegetais, são mortais (há até grama feita de lâminas afiadas!), Dek alia-se à androide avariada tagarela Thia (Elle Fanning), da Weyland-Yutani, e, depois, a uma espécie de símio de carapaça, em uma jornada mortal de autodescoberta que causa enormes prejuízos à corporação mais famosa do Universo Alien e, obviamente, à flora e à fauna local.
Entre variadas sequências de pancadaria de todo tipo que Trachtenberg maneja de seu jeito bem distante do finesse de John McTiernan que são embelezadas por uma direção de arte que parece feliz como pinto no lixo na criação de ameaças aterradoras diversas no planeta materializadas por meio de generosa quantidade de computação gráfica suficientemente boa para não fazer feio (a não ser que você seja o chato do CGI, que fica observando cada frame para achar defeito), o que chama atenção é a inusitada dinâmica entre Thia e Dek, algo que é facilitado por um tradutor universal conveniente, mas necessário, ambos encontrando um meio termo em suas “programações originais” e aos poucos convergindo para construir os inevitáveis e mais do que esperados laços de respeito e amizade que, não tenham dúvida, são estendidos ao tal símio de carapaça que, garanto, é mais do que apenas um “bichinho fofinho” (e nem fofinho ele é, vamos combinar). Há humor sem exageros e há a relativização daquilo que se convencionou esperar de um Predador, até porque nunca um Predador foi protagonista e não poderia ser tratado como uma silenciosa e solitária máquina de matar pela duração de um longa. Dek não é alguém que sofreu irremediável lavagem cerebral para achar que tudo na vida se resolve caçando ou matando e consegue compreender que existe a família em que nascemos e aquela que escolhemos, só para usar um clichê de revirar os olhos, mas que é verdadeiro mesmo assim.
Para tornar possível que Dek tivesse expressões faciais mais complexas do que “urros de raiva”, toda uma língua foi criada para os yaultjas pelo mesmo criador da língua dos Na’vi, da franquia Avatar, o que aumentou um pouco a latitude dramática verbal dos caçadores. O passo seguinte foi ampliar as possibilidades das prótese práticas das máscaras dos yaultjas com captura de performance em uma mescla que mais do que deu conta do recado, já que as emoções passadas não são lá particularmente complexas ou de difícil compreensão em razão do contexto, algo que é ainda facilitado pelo frenesi da ação que “borra” qualquer detalhamento maior. Elle Fanning, que também precisou de maquiagem, mas infinitamente menos, acerta o tom de sua personagem logo de cara, ou seja, é a parceira que começa insuportavelmente chata, mas que não demora a ganhar contornos mais relevantes do que ser a falastrona que preenche os momentos de silêncio com curiosidades da Rádio Relógio, com a justificativa para a escolha de uma androide e não uma humana para fazer par com o Predador estar perfeitamente embebida no roteiro de Patrick Aison, que também escreveu A Caçada.
Ousando em elevar um yaultja ao protagonismo e em fazer uma comédia de amigos que constrói um improvável trio de aventureiros perdidos no espaço e que também é um crossover das mais famosas franquias de alienígenas assassinos, Dan Trachtenberg continua em sua missão de revigorar uma propriedade audiovisual combalida pelo desgaste do tempo e da repetição, justificando esse renovado interesse pela fascinante criatura surgida nos anos 80. A diversão é garantida, assim como a pancadaria ininterrupta, mas Dek não é mais um alienígena monomaníaco recortado em cartolina e isso precisa ser compreendido e aceito se a intenção for apreciar Predador: Terras Selvagens.
Obs: Não há cenas de meio ou fim de créditos.
Predador: Terras Selvagens (Predator: Badlands – EUA, 2025)
Direção: Dan Trachtenberg
Roteiro: Patrick Aison (baseado em história de Patrick Aison e Dan Trachtenberg, por sua vez baseada em personagens criados por Jim Thomas e John Thomas)
Elenco: Elle Fanning, Dimitrius Schuster-Koloamatangi, Mike Homik, Rohinal Nayaran, Reuben De Jong, Cameron Brown, Stefan Grube, Alison Wright, Matt Duffer, Ross Duffer
Duração: 107 min.
