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Crítica | Round 6 – 1ª Temporada

por Iann Jeliel
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Round 6

A Coreia do Sul dá mais um passo mercadológico quebrando paradigmas. Após conquistar o primeiro Oscar de Melhor Filme de um filme não americano com Parasita, de surpresa surge Round 6 para se tornar a obra televisiva mais vista da história do mais popular serviço de streaming do mundo. O melhor de tudo é que ambos os fenômenos são justificados pela qualidade, e não somente pelo boca a boca. São obras autênticas idealizadas por uma mente criativa única, que pensa cinema (esta é uma série cinematográfica) com o sabor e características de sua cultura, mas que tem sensibilidade para sobrepô-la em um teor universal a ser abraçado pelo grande público. Com inteligência na abordagem de críticas sociais com pautas modernas facilmente identificáveis, além da entrega de um exercício de gênero catártico potencializando o debate acerca da temática no entretenimento.

Há quem diga que Round 6 deriva sua premissa de jogo mortal de vários outros universos distópicos, como o próprio japonês Battle Royale. Um julgamento bem injusto, pois a originalidade da obra não vem da inovação do corpo da ideia, mas sim da personalidade particular na execução dessa ideia. Hwang Dong-Hyuk, criador da série, possui uma visão com autenticidade visual inegável sobre o universo que está criando: no figurino peculiar dos organizadores dos jogos; no design de produção vistoso das salas onde ocorrem os seis jogos nos quais 456 cidadãos lutam para sobreviver e vencer; na escolha cuidadosa e de belíssimo gosto para enquadramentos estilosos, buscando comunicar algo além do que é falado nos diálogos da cena. Mas também tem uma visão de autenticidade discursiva: Round 6 não é só sobre luta de classes e é bem mais que sobre a espetacularização da violência – ainda que ambas as coisas sejam pautas. Diria que o “dorama” é principalmente um estudo da mutabilidade humana em sociedade.

Um estudo obviamente evidenciado pelas circunstâncias extremas de vida ou morte colocadas por cada jogo, como também por contextos explorados previamente. As dificuldades que cada personagem principal enfrenta na selva de concreto, nos dois primeiros episódios, trazem muito bem a motivação que os faz participar da brincadeira mortal, por vontade própria. Esse desenvolvimento prévio é fundamental, não só para simpatizamos com a maioria, mas para termos uma base de suas personalidades em que enxergamos como elas mudaram quando pressionadas pelas situações extremas, porque, de certo modo, elas já estavam vivendo. O sistema por si só é um grande “jogo da lula” (título original da série), sem a inocência de ser jogado por crianças. Desse modo, o jogo e suas brincadeiras mortais acabam meio que sendo uma extensão do que é o sistema para aqueles que não souberam lidar com ele.

É só perceber que os participantes não são exatamente pessoas pobres que em vida nasceram na classe baixa com condições financeiras precárias, e sim pessoas que se afundaram em dívidas por consequência de suas escolhas no capitalismo, independentemente se era motivadas por ganância ou por alguma necessidade específica de momento. Por isso as diretrizes do jogo se respaldam teoricamente em oportunidades iguais aos oponentes, onde a morte vem pelas escolhas de cada um que podem ser errôneas ou não, na incerteza do que vai acontecer no próximo passo. O fato de somente um poder sobreviver no final meio que indica que no sistema capitalista real dificilmente mais de um conseguiria superar tal tipo de crise. O sistema não permitiria, assim como o jogo não permite, levando a palavra “eliminação” logo no literal. Algo que soa, num primeiro momento, um absurdo. Pelo sadismo da violência na ambientação colorida infantil, choca. Contudo, depois do já icônico “Batatinha Frita 1, 2, 3…”, parece que vamos assimilando essa representação social do jogo no automático, pois vamos naturalizando a violência da mesma maneira que naturalizamos a miséria como uma realidade do ambiente.

O roteiro também vai ficando mais didático. Há todo um arco de investigação, que vai nos revelando os pormenores da história, igualmente interessante por ser sustentado por um mistério instigante e pela curiosidade de haver uma possível interferência dele nos desdobramentos do jogo. Em compensação ao costume da violência, evolui-se o desenvolvimento dos personagens e seu nível de importância. O enfoque narrativo vai ficando cada vez mais num grupo seleto com o qual simpatizamos, ou no mínimo, reagimos a suas atitudes – os “vilões” – pela boa construção de seus arquétipos e entrega marcante de todos do elenco. Ao focar nos melhores personagens, os jogos em que eles estão ficam mais viscerais, emocionantes, com peso nas perdas. Destaque evidente para o quarto jogo, do sexto episódio, intitulado Gganbu. Disparadamente, o melhor entre os nove episódios – ainda que todos mantenham uma constante de qualidade, especialmente no ritmo – pela enorme sensibilidade no tratamento das inevitáveis mortes que acontecem ali. É simplesmente devastador!

Se há algo do que reclamar em Round 6, talvez sejam alguns fechamentos do último episódio. Uma virada, em especial, que apesar de ser coerentemente construída nas entrelinhas dos demais episódios e de fechar o raciocínio crítico da série, é bastante anticlimática, diminuindo até um pouco do peso emocional de Gganbu e de outros momentos envolvendo o personagem por detrás da cortina. Talvez fosse uma saída já planejada do criador, pensando em compensar a previsibilidade do resultado do jogo, dando também outro peso dramático ao seu vencedor – o que, de fato, ocorre. Contudo, penso que a ótima execução das etapas já compensa a previsibilidade dos fins, e o peso dado por tal revelação é mais relevante para uma futura segunda temporada do que para o fechamento desta. Lembremos, o plano inicial de Hwang Dong-Hyuk era fazer somente uma temporada – com o sucesso monstruoso, acho difícil não acontecer outra –, o que invalida essa tentativa de final “aberto”.

Apesar desses apontamentos, Round 6 definitivamente não pode ser classificado como “só hype”. Pelo contrário, é um alívio esperançoso ver essa série como “Top 1 da Netflix” (deve ser superada em algum momento, mas até lá…), ao invés de seus outros enlatados produzidos “a toque de caixa”. Porque este é um dos títulos de calibre para simbolizar esta era de crescimento globalizado da arte coreana no século. Uma série autoral, viciante, bem-construída, bem-produzida, bem-dirigida, bem-escrita, reflexiva e divertida na mesma medida, que mereceu e conquistou todo o sucesso por meio desses méritos.

Round 6 (오징어 게임 | Squid Game) – 1ª Temporada | Coreia do Sul, 2021
Criação: Hwang Dong-Hyuk
Direção: Hwang Dong-Hyuk
Roteiro: Hwang Dong-Hyuk
Elenco: Jung-Jae Lee, Greg Chun, Stephen Fu, Tom Choi, Hae-soo Park, Lee Byung-Hun, Gong Yoo, Hoyeon Jung, Paul Nakauchi, Stephanie Komure, Wi Ha-Joon, Caleb Yen, Anupam Tripathi, Hideo Kimura, Donald Chang, Yeong-Su Oh, Heo Sung-Tae, Nick Martineau, Joo-Ryeong Kim, Brian Kim, Raymond Lee, Yuuki Luna, Edward Hong
Duração: 9 episódios – 54 minutos em média cada episódio – 485 minutos no total

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