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Crítica | Um Dia com Jerusa

por Michel Gutwilen
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É a partir de um ordinário e protocolar evento que se desenvolve a narrativa de Um Dia com Jerusa, indo em direção ao místico e ao afetivo. De uma simples pesquisa de consumidor  nasce um resgate à ancestralidade negra. Afinal, as memórias de uma solitária idosa não caberiam em duas linhas de um formulário, no qual as perguntas deveriam ser respondidas objetivamente. Se a história tem como base um pedaço de papel (o questionário), com perguntas padronizadas, que enxergam o cidadão como “potencial consumidor” a ser “estudado”, a lógica narrativa inverte essa questão: a valorização do ser humano como pessoa em si mesma, que carrega rastros de toda uma origem prévia a ele. Do generalismo ao personalismo. De uma resposta  que viraria um dado no sistema à revelação da história de Jerusa.

Do mesmo modo, não se trata somente de um “dia com Jerusa”, mas também de um dia com a pesquisadora Silvia Ferreira. Ambas começam o filme inseridas em uma lógica capitalista de pesquisa de marketing, nas posições de “pesquisadora” e “entrevistada”. Afinal, Silvia foi treinada para uma maior eficiência e a impessoalidade. No entanto, há duas coisas que ligam ambas as personagens: são mulheres e são negras. O primeiro gesto de humanidade é quando Silvia descobre ser este o dia do aniversário de Jerusa. Surge então um abraço, um carinho inesperado e que aproxima as duas. A partir disso, o próprio roteiro vai trabalhando situações que fazem com que as duas protagonistas se lembrem que elas são duas humanas tendo uma troca naquele momento, como a menstruação inesperada de Silvia, que lhe deixa em enorme posição de vulnerabilidade e acaba com qualquer resquício de uma tentativa em manter uma conversa distanciada (que no capitalismo seria sinônimo de “impessoal”).

A palavra “troca”, então, se torna essencial para o entendimento de Um Dia com Jerusa, pois a narrativa se constrói tanto a partir de uma aproximação (mulheres negras) quanto de um distanciamento (choque geracional). Esta troca ocorre tanto a nível verbal, do relato oral, mas também pela própria mise-en-scène de Viviane Ferreira. O espaço da casa de Jerusa é decupado de uma forma na qual a câmera é posicionada em posições “estranhas”, transformando o ordinário de uma simples casa em um ambiente simbólico e que parece suspenso do espaço-tempo. Inclusive, tal simbolismo perpassa a própria atuação da veterana Léa Garcia, de gestos faciais muito expressivos e uma fala pausada. Em um momento específico, a câmera de Viviane está em close-up, no seu rosto. Naquele momento, não há mais espaço atrás dela, a protagonista é tudo o que importa, indo em consonância com este movimento de valorização do aspecto humano.

Somados, todos esses elementos — a atuação de Léa, a decupagem sugestiva, a narração das histórias — vão caminhando para uma “hipnose” tanto de Silvia, quanto do espectador, que se transporta do lugar físico, que é a casa, para um outro lugar, um limbo onde aquelas histórias vão sendo imaginadas e repensadas. Neste sentido, uma verdadeira troca: de experiências entre mulheres negras, do espaço físico pelo fabular, da impessoalidade para o afeto humano. No fim, a diretora Viviane Ferreira consegue transferir muito bem o que ela já havia feito no curta O Dia de Jerusa, com a maior duração do longa beneficiando o sentimento de que o tempo se prolonga durante a entrevista.

Um Dia com Jerusa — Brasil, 2020
Direção: Viviane Ferreira
Roteiro: Viviane Ferreira
Elenco: Léa Garcia, Débora Marçal, Antônio Pitanga, Tássia Reis
Duração: 76 mins.

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