Os filmes que apresentam os zumbis como ameaças ao aspecto humano de nossa sociedade fazem parte de um profícuo subgênero cinematográfico, com variações que trafegam pelo terror, suspense, aventura e até mesmo versões paródicas que mesclam comédia e romance. Um dos mais intrigantes deste segmento é o clássico moderno Extermínio, de 2002, dirigido por Danny Boyle, um sucesso de bilheteria e também de conexão com a crítica especializada de cinema. Na trama, temos diversas críticas e reflexões sobre o desenvolvimento da humanidade, os riscos dos experimentos científicos, a desconfiança nas instituições, dentre outros. Uma das principais abordagens reflexivas, por sua vez, é o comportamento humano e a raiva que nalguns momentos de nosso cotidiano, se intensifica e nos faz perder a racionalidade. Basta se lembrar do drama argentino Relatos Selvagens para compreender o que apresento como proposta aqui: a raiva como metáfora central de uma trama onde os humanos, após infectados, são transformados em criaturas monstruosas, numa contaminação em cascata. Este filme apocalíptico não apenas explora a devastação física causada por um vírus, mas também a desintegração da civilização e a revelação dos instintos primitivos que habitam o ser humano. Por meio de uma narrativa vertiginosa, Boyle e sua eficiente equipe nos propõe uma reflexão sobre a dualidade da natureza humana, confrontando a racionalidade e a ferocidade que emergem em situações extremas.
Ao longo dos 113 minutos de Extermínio, a infecção viral provoca um surto de raiva em massa, transformando as pessoas em “sanguinários”. Este conceito metafórico da raiva não é apenas biológica, mas sim um reflexo das emoções que muitas vezes dormem em nosso interior. A raiva, enquanto instinto, revela a fragilidade das estruturas sociais e morais que sustentam a civilização. Quando confrontados com a ameaça da sobrevivência, indivíduos se tornam predadores, dispostos a sacrificar seus princípios éticos para garantir a própria existência. Os personagens do filme exemplificam essa luta interna. O protagonista interpretado por Cillian Murphy acorda em um mundo devastado, onde a empatia e a solidariedade são colocadas à prova. Ao passo que a narrativa avança, ele se vê obrigado a assumir condutas desesperadas, exemplificando a transição de um ser civilizado para um instinto primitivo de sobrevivência. Assim, o texto dramático e sua execução em tela ilustram como a linha entre a civilização e a barbárie é tênue, e como o que consideramos como “humanidade” pode rapidamente se desvanecer.
Um dos aspectos mais impactantes do filme é a evolução da violência que ocorre não apenas entre os infectados, mas também entre os sobreviventes. Os humanos, em sua luta pelo que lhes resta, tornam-se corpos repletos de medo, indo até mesmo ao ponto de desumanizar aqueles que eram outrora seus companheiros, como geralmente ocorre nos filmes com os zumbis sendo a temática. Assim, Extermínio apresenta uma apurada crítica à sociedade moderna: a raiva desmedida e os instintos descontrolados se configuram como elementos que podem sobrepor-se à compaixão e à empatia, revelando um lado obscuro de nossa natureza que a civilização frequentemente oculta. Além disso, o filme sugere que essa raiva é, em parte, uma resposta instintiva contra a situação de caos em que a humanidade se encontra. Quando os valores da sociedade desmoronam, a capacidade de racionalizar e agir com altruísmo é substituída por uma luta visceral pela sobrevivência. Essas mensagens são amplificadas pelas representações visuais de devastação nas ruas de Londres, uma cidade que, em sua essência, simboliza a civilização organizada e, ao mesmo tempo, a vulnerabilidade humana.
Tais questões nos permitem refletir sobre o longo panorama de filmes de zumbis ao longo da história do cinema. Nem todas as tramas abordam a questão da contaminação oriunda de uma infecção, por isso, adianto que apesar de conhecer profundamente o painel de narrativas deste segmento, não cabe aqui a inserção de produções embrionárias do subgênero, tais como Zumbi Branco, A Morta-Viva, A Maldição dos Mortos-Vivos, dentre outros, já analisados em situações anteriores, combinado? Escrever sobre mortos, vivos e infectados por meio de uma analisa histórica panorâmica nos leva, sem possibilidade de contornos, para clássicos como A Noite dos Mortos Vivos, de 1968, dirigido por George Romero, um marco do cinema de terror que, além de suas conotações de entretenimento, funciona como um veículo poderoso para a crítica social. Usando a premissa de um apocalipse zumbi, Romero desenha um cenário que reflete as tensões, medos e divisões da sociedade da época. Neste contexto, várias metáforas sociais emergem, revelando verdades profundas sobre a natureza humana, o preconceito e a violência. Diferente de seus antecessores, neste filme, é o contato violento entre um ser humano e um zumbi estabelece a transformação monstruosa. Uma das metáforas mais evidentes no filme é a representação do medo do desconhecido. Os mortos-vivos, figuras que personificam a perda da individualidade e da humanidade, são uma metáfora para as forças sociais que ameaçam a ordem estabelecida.
Eles podem ser vistos como uma representação do “outro”, o que é diferente e, por conseguinte, aterrorizante. O medo de algo que não pode ser compreendido ou controlado é um reflexo direto das ansiedades sociais da década de 1960, particularmente em um contexto de mudanças rápidas nos direitos civis e nas normas sociais. Outro ponto crucial a ser destacado é a crítica ao consumismo e à desumanização na sociedade moderna. Os zumbis, que incessantemente buscam carne humana, podem ser interpretados como uma crítica à cultura consumista que transformou as pessoas em meros consumidores, desprovidas de individualidade. O filme sugere que, em um ambiente dominado pelo consumismo, a humanidade pode facilmente se tornar um produto a ser devorado, levando a um comportamento primitivo e instintivo que desconsidera a moralidade e a ética. Além disso, a luta interna dos personagens principais do filme, que se encontram em um refúgio em uma casa isolada, serve como uma metáfora para a fragmentação da sociedade. As interações entre os personagens revelam as prejudiciais divisões sociais, como classe, raça e sexo. Por exemplo, a presença de Ben, um personagem afro-americano que assume um papel de liderança, desafia os estereótipos raciais da época.
A sua luta pela sobrevivência contrasta com a desconfiança e o medo de alguns dos outros personagens, destacando a alienação e o preconceito que estavam presentes na sociedade norte-americana nos anos 1960. Tais pontos, cada um à sua maneira, se desenvolvem em outras narrativas de zumbi de Romero, explicitadas brevemente mais adiante. Finalmente, a própria conclusão do filme, que culmina em um desfecho trágico e sombrio, reflete a impotência diante de forças sociais incontroláveis. Em vez de uma resolução esperançosa, o filme termina com uma crítica contundente à violência intrínseca que permeia não apenas a luta contra os zumbis, mas as relações humanas em geral. Este fim abrupto e pessimista sugere que a verdadeira ameaça pode não ser os mortos-vivos, mas sim a violência e o preconceito que existem entre os humanos. Em linhas gerais, A Noite dos Mortos Vivos não apenas retrata um mundo apocalíptico, mas também convida os espectadores a refletirem sobre as suas próprias realidades sociais, suscitando discussões relevantes que ainda ressoam na sociedade contemporânea, haja vista os posteriores Despertar dos Mortos, Dia dos Mortos, Terra dos Mortos, A Ilha dos Mortos, etc.
Como exposto, A Noite dos Mortos Vivos reflete os temores sociais da época, particularmente sobre a Guerra Fria e os conflitos raciais. A presença do zumbi é uma manifestação do “outro” que ameaça a sociedade estabelecida, com criaturas que representam a desumanização que a guerra e a violência podem causar. Em Despertar dos Mortos, 1978, um grupo de sobreviventes se abriga em um centro comercial enquanto os zumbis dominam o mundo. Na trama, o shopping center é uma crítica ao consumismo desenfreado da sociedade americana. Os zumbis, que vagam pelo shopping, simbolizam consumidores apáticos e alienados, numa narrativa que apresenta incapacidade dos zumbis em evoluir ou mudar representa o conformismo da sociedade. Em 1985, o cineasta lançou Dia dos Mortos, sobre um grupo de cientistas e militares que se esconde em uma instalação subterrânea e estuda os zumbis. Sua principal metáfora é o controle militar sobre a situação reflete as tensões da Guerra Fria e a paranoia sobre a perda de liberdade em prol da segurança. Neste, a tentativa de educar os zumbis simboliza a luta para reconectar a humanidade até mesmo nas situações mais desesperadoras.
Em 2005, o realizador lançou Terra dos Mortos, trama que nos apresenta um mundo dominado por zumbis, onde alguns humanos se refugiam em uma cidade fortificada. Tal instalação nos mostra uma sociedade dividida entre ricos e pobres, refletindo as desigualdades sociais e econômicas. A luta dos zumbis, que começam a mostrar um comportamento mais intelecto, sugere uma crítica ao controle social e à necessidade de resistência. É um dos mais interessantes filmes do segmento assinados por George A. Romero. Mais adiante, em 2009, o cineasta entregou o irregular A Ilha dos Mortos, trama sobre um grupo de sobreviventes busca refúgio em uma ilha, que se torna um novo campo de batalha. Apesar de não funcionar dramaticamente como os mencionados anteriormente, o filme é poderoso em suas críticas sociais. A ilha, que inicialmente parece um lugar seguro, simboliza como o espaço que deve proteger pode se tornar uma prisão. Na produção, as interações entre humanos e zumbis falam sobre a natureza da infecção, tanto física quanto psicológica. Em todos estes filmes, a infecção zumbi se estabelece como uma poderosa metáfora para diversas preocupações sociais, refletindo os medos e ansiedades da época em que foram feitos, ao mesmo tempo em que provocam discussões sobre a condição humana. A capacidade de Romero de entrelaçar crítica social e horror fez dele um criador fundamental no cinema de horror e um influente contador de histórias, tornando-se um mentor para todos aqueles que retrataram os zumbis na ficção, tanto no cinema quanto nas produções seriadas televisivas, hoje em demasia nos streamings.
Diante do exposto, a infecção nos filmes de zumbis é frequentemente uma metáfora poderosa para a transformação da humanidade em algo monstruoso, refletindo medos sobre a desumanização, a violência e a perda de controle. No desenvolvimento de Madrugada dos Mortos, refilmagem de Despertar dos Mortos, a infecção zumbi provoca uma transformação radical na identidade individual. Os zumbis perdem suas memórias e humanidade, simbolizando como as forças externas (como a sociedade ou a guerra) podem despojar a essência humana e reduzir as pessoas a meras máquinas de sobrevivência. É desolador perceber que aquela pessoa que você mantinha sentimentos de ternura e uma vida compartilhada, se transformou numa ameaçadora criatura que precisa ser eliminada. A infecção é frequentemente tratada nestas narrativas como uma estratégia para representar a desumanização em massa, onde os infectados não são mais vistos como humanos, mas como monstros. Essa transformação reflete formas de opressão e controle social, sugerindo que a sociedade pode tratar os outros como seres inferiores. Não Se Deve Profanar o Sono dos Mortos, A Noite do Terror Cego, Noites de Terror, Pavor na Cidade dos Zumbis, dentre outros, são clássicos nesta mesma linhagem.
A infecção zumbi gera um medo palpável do contágio, que vai além do físico. Ela simboliza o medo do que é diferente ou desconhecido, refletindo as preocupações sociais com a epidemia, imigração e outros fenômenos que podem ameaçar a “pureza” da sociedade. Os zumbis muitas vezes parecem uma versão exagerada do que pode acontecer com os seres humanos quando se abandonam valores morais e se sucumbe a instintos primitivos. Esta infecção destaca como a monstruosidade pode estar latente em todos nós, aguardando circunstâncias que a liberem. Ademais, a transformação em zumbi é frequentemente associada à liberação de comportamentos violentos e antissociais, refletindo a fragilidade da civilização. Essa metáfora sugere que, em circunstâncias extremas, a humanidade pode rapidamente regredir a uma natureza predatória. Tudo isso pode ser visto até mesmo nas versões paródicas do subgênero: a trilogia A Volta dos Mortos Vivos, A Noite dos Arrepios, As Uvas da Morte e o blaxploitation Os Zumbis de Sugar Hill, dentre outros, tramas que revertem a abordagem assustadora dos infectados por meio de um discurso que privilegia o horror, mas sobrepõe camadas generosas de humor.
Outro ponto crucial na infecção zumbi destes filmes é a simbologia da luta interna entre a racionalidade humana e o instinto animal. Os personagens podem enfrentar dilemas morais sobre preservar a humanidade ou sucumbir ao instinto de sobrevivência, sublinhando a tensão entre estas duas forças. Neste panorama de dores, a infecção costuma ser um reflexo de traumas sociais e históricos, pois a transformação em zumbi pode simbolizar a maneira como a violência e o trauma se perpetuam através das gerações. The Walking Dead e seus derivados tratam disso com veemência. Os zumbis, caro leitor, são frequentemente representados como isolados e alienados em sua nova forma, refletem a vulnerabilidade humana à alienação social. A infecção simboliza como a desconexão e a falta de empatia podem transformar pessoas em “monstros” dentro de suas comunidades. Cidade Maldita, Zumbi 2: A Volta dos Mortos, Sonho de Morte, Os Canibais do Apocalipse, Os Predadores da Noite, Zumbi 3, Quarentena, Zumbis do Mal, Ondas do Pavor, Os Mortos-Vivos, Zeder, dentre outros, flertam com esta perspectiva, em tramas que costumam retratar a infecção e suas variantes de disseminação como uma catástrofe que leva ao colapso da civilização. Isso evidencia temores sobre a fragilidade do progresso humano e a possibilidade de uma rápida devolução ao estado selvagem, onde a monstruosidade se torna a norma. Mas, apesar da transformação em monstros, muitos filmes de zumbis também exploram a ideia de que a humanidade pode encontrar redenção, mesmo em meio ao caos. A luta por compreensão e cura pode ser vista como uma esperança de que, mesmo diante da infecção, ainda existe a possibilidade de restaurar a humanidade.
Você, caro leitor, conhece algum clássico ou contemporâneo que reflete tais questões?